| | FERNANDO PESSOA - COMPRE 1 LEVE 5 | |
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Autor | Mensagem |
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Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: FERNANDO PESSOA - COMPRE 1 LEVE 5 Qua Ago 05, 2009 5:07 pm | |
| Ilumina-se a Igreja por Dentro da Chuva
Ilumina-se a igreja por dentro da chuva deste dia, E cada vela que se acende é mais chuva a bater na vidraça...
Alegra-me ouvir a chuva porque ela é o templo estar aceso, E as vidraças da igreja vistas de fora são o som da chuva ouvido por dentro ...
O esplendor do altar-mor é o eu não poder quase ver os montes Através da chuva que é ouro tão solene na toalha do altar...
Soa o canto do coro, latino e vento a sacudir-me a vidraça E sente-se chiar a água no fato de haver coro...
A missa é um automóvel que passa Através dos fiéis que se ajoelham em hoje ser um dia triste... Súbito vento sacode em esplendor maior A festa da catedral e o ruído da chuva absorve tudo Até só se ouvir a voz do padre água perder-se ao longe Com o som de rodas de automóvel...
E apagam-se as luzes da igreja Na chuva que cessa ...
Fernando Pessoa, in "Cancioneiro" | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: FERNANDO PESSOA - COMPRE 1 LEVE 5 Qua Ago 05, 2009 5:08 pm | |
| Citações de Fernando Pessoa:
A única atitude intelectual digna de uma criatura superior é a de uma calma e fria compaixão por tudo quanto não é ele próprio. Não que essa atitude tenha o mínimo cunho de justa e verdadeira; mas é tão invejável que é preciso tê-la
Nunca sabemos quando somos sinceros. Talvez nunca o sejamos. E mesmo que sejamos sinceros hoje, amanhã podemos sê-lo por coisa contrária
O mais alto de nós não é mais que um conhecedor mais próximo do oco e do incerto de tudo
Pode ser que nos guie uma ilusão; a consciência, porém, é que nos não guia
Tudo em nós está em nosso conceito do mundo; modificar o nosso conceito do mundo é modificar o mundo para nós, isto é, é modificar o mundo, pois ele nunca será, para nós, senão o que é para nós.
A vida prejudica a expressão da vida. Se eu vivesse um grande amor nunca o poderia contar
Nenhum livro para crianças deve ser escrito para crianças
As nações são todas mistérios. / Cada uma é todo o mundo a sós
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| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: FERNANDO PESSOA - COMPRE 1 LEVE 5 Qua Ago 05, 2009 5:09 pm | |
| TABACARIA
Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. à parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto, Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é (E se soubessem quem é, o que saberiam?), Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente, Para uma rua inacessível a todos os pensamentos, Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa, Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres, Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens, Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade. Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer, E não tivesse mais irmandade com as coisas Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada De dentro da minha cabeça, E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu. Estou hoje dividido entre a lealdade que devo À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora, E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Falhei em tudo. Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada. A aprendizagem que me deram, Desci dela pela janela das traseiras da casa. Fui até ao campo com grandes propósitos. Mas lá encontrei só ervas e árvores, E quando havia gente era igual à outra. Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou? Ser o que penso? Mas penso tanta coisa! E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos! Génio? Neste momento Cem mil cérebros se concebem em sonho genios como eu, E a história não marcará, quem sabe?, nem um, Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras. Não, não creio em mim. Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas! Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo? Não, nem em mim... Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando? Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas - Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -, E quem sabe se realizáveis, Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente? O mundo é para quem nasce para o conquistar E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão. Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez. Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo, Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu. Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda, Ainda que não more nela; Serei sempre o que não nasceu para isso; Serei sempre só o que tinha qualidades; Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira, E ouviu a voz de Deus num poço tapado. Crer em mim? Não, nem em nada. Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo, E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha. Escravos cardíacos das estrelas, Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama; Mas acordámos e ele é opaco, Levantamo-nos e ele é alheio, Saímos de casa e ele é a terra inteira, Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.
(Come chocolates, pequena; Come chocolates! Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates. Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria. Come, pequena suja, come! Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes! Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho, Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei A caligrafia rápida destes versos, Pórtico partido para o Impossível. Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas, Nobre ao menos no gesto largo com que atiro A roupa suja que sou, em rol, para o decurso das coisas, E fico em casa sem camisa.
(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas, Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva, Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta, Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida, Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua, Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais, Ou não sei que moderno - não concebo bem o quê - Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire! Meu coração é um balde despejado. Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco A mim mesmo e não encontro nada. Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta. Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam, Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam, Vejo os cães que também existem, E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo, E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
Vivi, estudei, amei e até cri, E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu. Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira, E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses (Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso); Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente
Fiz de mim o que não soube E o que podia fazer de mim não o fiz. O dominó que vesti era errado. Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me. Quando quis tirar a máscara, Estava pegada à cara. Quando a tirei e me vi ao espelho, Já tinha envelhecido. Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado. Deitei fora a máscara e dormi no vestiário Como um cão tolerado pela gerência Por ser inofensivo E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
Essência musical dos meus versos inúteis, Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse, E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte, Calcando aos pés a consciência de estar existindo, Como um tapete em que um bêbado tropeça Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.
Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta. Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada E com o desconforto da alma mal-entendendo. Ele morrerá e eu morrerei. Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos. A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também. Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta, E a língua em que foram escritos os versos. Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu. Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra, Sempre uma coisa tão inútil como a outra, Sempre o impossível tão estúpido como o real, Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície, Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?), E a realidade plausível cai de repente em cima de mim. Semiergo-me enérgico, convencido, humano, E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos. Sigo o fumo como uma rota própria, E gozo, num momento sensitivo e competente, A libertação de todas as especulações E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.
Depois deito-me para trás na cadeira E continuo fumando. Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira Talvez fosse feliz.) Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela. O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?). Ah, conheco-o; é o Esteves sem metafísica. (O Dono da Tabacaria chegou à porta.) Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me. Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.
(Álvaro de Campos) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: FERNANDO PESSOA - COMPRE 1 LEVE 5 Qua Ago 05, 2009 5:10 pm | |
| A Imperfeição dos Nossos Sentidos
Se os nossos sentidos fossem perfeitos, não precisávamos de inteligência; nem as ideias abstractas de nada nos serviriam. A imperfeição dos nossos sentidos faz com que não concordemos em absoluto sobre um objecto ou um facto do exterior. Nas ideias abstractas concordamos em absoluto. Dois homens não vêem uma mesa da mesma maneira; mas ambos entendem a palavra «mesa» da mesma maneira. Só querendo visualizar uma coisa é que divergirão; isso, porém, não é a ideia abstracta da mesa.
Fernando Pessoa, in 'Ricardo Reis - Prosa' | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: FERNANDO PESSOA - COMPRE 1 LEVE 5 Qua Ago 05, 2009 5:14 pm | |
| Fúria nas Trevas o Vento
Fúria nas trevas o vento Num grande som de alongar, Não há no meu pensamento Senão não poder parar.
Parece que a alma tem Treva onde sopre a crescer Uma loucura que vem De querer compreender.
Raiva nas trevas o vento Sem se poder libertar. Estou preso ao meu pensamento Como o vento preso ao ar.
Fernando Pessoa, in "Cancioneiro" | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: FERNANDO PESSOA - COMPRE 1 LEVE 5 Qua Ago 05, 2009 5:15 pm | |
| Citações de Fernando Pessoa:
Sinto-me nascido a cada momento / Para a eterna novidade do Mundo...
O poeta é um fingidor. / Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente
Alague o seu coração de esperanças, mas não deixe que ele se afogue nelas
O homem é do tamanho do seu sonho
Sentir é estar distraído
Não sou da altura que me vêem, mas sim da altura que os meus olhos podem ver
Tudo é ousado para quem nada se atreve
A força sem a destreza é uma simples massa
Creio que dizer uma coisa é conservar-lhe a virtude e tirar-lhe o terror
Não o prazer, não a glória, não o poder: a liberdade, unicamente a liberdade
Passar dos fantasmas da fé para os espectros da razão é somente ser mudado de cela
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| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: FERNANDO PESSOA - COMPRE 1 LEVE 5 Qua Ago 05, 2009 5:16 pm | |
| O que há em mim é sobretudo cansaço
O que há em mim é sobretudo cansaço Não disto nem daquilo, Nem sequer de tudo ou de nada: Cansaço assim mesmo, ele mesmo, Cansaço.
A subtileza das sensações inúteis, As paixões violentas por coisa nenhuma, Os amores intensos por o suposto alguém. Essas coisas todas - Essas e o que faz falta nelas eternamente -; Tudo isso faz um cansaço, Este cansaço, Cansaço.
Há sem dúvida quem ame o infinito, Há sem dúvida quem deseje o impossível, Há sem dúvida quem não queira nada - Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles: Porque eu amo infinitamente o finito, Porque eu desejo impossivelmente o possível, Porque eu quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser, Ou até se não puder ser...
E o resultado? Para eles a vida vivida ou sonhada, Para eles o sonho sonhado ou vivido, Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto... Para mim só um grande, um profundo, E, ah com que felicidade infecundo, cansaço, Um supremíssimo cansaço. Íssimo, íssimo. íssimo, Cansaço...
(Álvaro de Campos) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: FERNANDO PESSOA - COMPRE 1 LEVE 5 Qua Ago 05, 2009 5:17 pm | |
| A Sociedade é um Sistema de Egoísmos Maleáveis
A sociedade é um sistema de egoísmos maleáveis, de concorrências intermitentes. Como homem é, ao mesmo tempo, um ente individual e um ente social. Como indivíduo, distingue-se de todos os outros homens; e, porque se distingue, opõe-se-lhes. Como sociável, parece-se com todos os outros homens; e, porque se parece, agrega-se-lhes. A vida social do homem divide-se, pois, em duas partes: uma parte individual, em que é concorrente dos outros, e tem que estar na defensiva e na ofensiva perante eles; e uma parte social, em que é semelhante dos outros, e tem tão-somente que ser-lhes útil e agradável. Para estar na defensiva ou na ofensiva, tem ele que ver claramente o que os outros realmente são e o que realmente fazem, e não o que deveriam ser ou o que seria bom que fizessem. Para lhes ser útil ou agradável, tem que consultar simplesmente a sua mera natureza de homens.
A exacerbação, em qualquer homem, de um ou o outro destes elementos leva à ruína integral desse homem, e, portanto, à própria frustração do intuito do elemento predominante, que, como é parte do homem, cai com a queda dele. Um indivíduo que conduza a sua vida em linhas de uma moral altíssima e pura acabará por ser ultrajado por toda a gente - até pelos indivíduos que, sendo também morais, o são com menos altura e pureza. E o despeito, a amargura, a desilusão, que corroem a natureza moral, serão os resultados da sua experiência. Mas também um indivíduo, que conduza a sua vida em linhas de um embuste constante, acabará, ou na cadeia, onde há pouco que intrujar, ou por se tornar suspeito a todos e por isso já não poder intrujar ninguém.
Fernando Pessoa, in 'Os Preceitos Práticos em Geral e os de Henry Ford em Particular' | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: FERNANDO PESSOA - COMPRE 1 LEVE 5 Qua Ago 05, 2009 5:18 pm | |
| Fresta
Em meus momentos escuros Em que em mim não há ninguém, E tudo é névoas e muros Quanto a vida dá ou tem,
Se, um instante, erguendo a fronte De onde em mim sou aterrado, Vejo o longínquo horizonte Cheio de sol posto ou nado
Revivo, existo, conheço, E, ainda que seja ilusão O exterior em que me esqueço, Nada mais quero nem peço. Entrego-lhe o coração.
Fernando Pessoa, in "Cancioneiro" | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: FERNANDO PESSOA - COMPRE 1 LEVE 5 Qua Ago 05, 2009 5:19 pm | |
| Citações de Fernando Pessoa:
Foi só um momento, e vi-me. Depois já não sei sequer dizer o que fui
Assim como lavamos o corpo devíamos lavar o destino, mudar de vida como mudamos de roupa
Há um cansaço da inteligência abstracta, e é o mais horroroso dos cansaços. Não pesa como o cansaço do corpo, nem inquieta como o cansaço do conhecimento e da emoção. É um peso da consciência do mundo, um não poder respirar da alma
A solidão desola-me; a companhia oprime-me
A beleza de um corpo nu só o sentem as raças vestidas
O que é doença é desejar com igual intensidade o que é preciso e o que é desejável, e sofrer por não ser perfeito como se se sofresse por não ter pão. O mal romântico é este: é querer a lua como se houvesse maneira de a obter
Benditos os que não confiam a vida a ninguém
Cada um tem a sua vaidade, e a vaidade de cada um é o seu esquecimento de que há outros com alma igual
A civilização consiste em dar a qualquer coisa um nome que lhe não compete, e depois sonhar sobre o resultado. E realmente o nome falso e o sonho verdadeiro criam uma nova realidade. O objecto torna-se realmente outro, porque o tornámos outro. Manufacturamos realidades | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: FERNANDO PESSOA - COMPRE 1 LEVE 5 Qua Ago 05, 2009 5:21 pm | |
| Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio.
Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio. Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos Que a vida passa, e nao estamos de maos enlaçadas. (Enlacemos as maos.)
Depois pensemos, crianças adultas, que a vida Passa e nao fica, nada deixa e nunca regressa, Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado, Mais longe que os deuses.
Desenlacemos as maos, porque nao vale a pena cansarmo-nos. Quer gozemos, quer nao gozemos, passamos como o rio. Mais vale saber passar silenciosamente E sem desassosegos grandes.
Sem amores, nem ódios, nem paixoes que levantam a voz, Nem invejas que dao movimento demais aos olhos, Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria, E sempre iria ter ao mar.
Amemo-nos tranquilamente, pensando que podiamos, Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias, Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro Ouvindo correr o rio e vendo-o.
Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as No colo, e que o seu perfume suavize o momento - Este momento em que sossegadamente nao cremos em nada, Pagaos inocentes da decadencia.
Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-as de mim depois sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova, Porque nunca enlaçamos as maos, nem nos beijamos Nem fomos mais do que crianças.
E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio, Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti. Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim - à beira-rio, Pagã triste e com flores no regaço.
(Ricardo Reis) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: FERNANDO PESSOA - COMPRE 1 LEVE 5 Qua Ago 05, 2009 5:23 pm | |
| Sábio é Quem Monotoniza a Existência
Sábio é quem monotoniza a existência, pois então cada pequeno incidente tem um privilégio de maravilha. O caçador de leões não tem aventura para além do terceiro leão. Para o meu cozinhiero monótono uma cena de bofetadas na rua tem sempre qualquer coisa de apocalipse modesto. Quem nunca saiu de Lisboa viaja no infinito no carro até Benfica, e, se um dia vai a Sintra, sente que viajou até Marte. O viajante que percorreu toda a terra não encontra de cinco mil milhas em diante novidade, a velhice do eterno novo, mas o conceito abstracto de novidade ficou no mar com a segunda delas.
Fernando Pessoa, in "Livro do Desassossego"
Última edição por Anarca em Qui Ago 06, 2009 4:24 pm, editado 1 vez(es) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: FERNANDO PESSOA - COMPRE 1 LEVE 5 Qua Ago 05, 2009 5:23 pm | |
| Fosse eu Apenas, não Sei Onde ou Como
Fosse eu apenas, não sei onde ou como, Uma coisa existente sem viver, Noite de Vida sem amanhecer Entre as sirtes do meu dourado assomo....
Fada maliciosa ou incerto gnomo Fadado houvesse de não pertencer Meu intuito gloríola com Ter A árvore do meu uso o único pomo...
Fosse eu uma metáfora somente Escrita nalgum livro insubsistente Dum poeta antigo, de alma em outras gamas,
Mas doente, e , num crepúsculo de espadas, Morrendo entre bandeiras desfraldadas Na última tarde de um império em chamas...
Fernando Pessoa, in "Cancioneiro" | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: FERNANDO PESSOA - COMPRE 1 LEVE 5 Qua Ago 05, 2009 5:25 pm | |
| Citações de Fernando Pessoa:
Uma espécie de anteneurose do que serei quando já não for gela-me o corpo e alma. Uma como que lembrança da minha morte futura arrepia-me dentro
Aquilo que, creio, produz em mim o sentimento profundo, em que vivo, de incongruência com os outros, é que a maioria pensa com a sensibilidade, e eu sinto com o pensamento
Há sensações que são sonos, que ocupam como uma névoa toda a extensão do espírito, que não deixam pensar, que não deixam agir, que não deixam claramente ser
Entre mim e a vida há um vidro ténue. por mais nitidamente que eu veja e compreenda a vida, eu não lhe posso tocar
Os meus sonhos são um refúgio estúpido, como um guarda-chuva contra um raio
A minha vida é como se me batessem com ela
Se conhecêssemos a verdade, vê-la-íamos; tudo o mais é sistema e arrabaldes
Trazem-me a fé como um embrulho fechado numa salva alheia. Querem que o aceite para que não o abra
A superioridade do sonhador consiste em que sonhar é muito mais prático que viver, e em que o sonhador extrai da vida um prazer muito mais vasto e muito mais variado do que o homem de acção. Em melhores e mais directas palavras, o sonhador é que é o homem de acção
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| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: FERNANDO PESSOA - COMPRE 1 LEVE 5 Qua Ago 05, 2009 5:27 pm | |
| Segue o teu destino
Segue o teu destino, Rega as tuas plantas, Ama as tuas rosas. O resto é a sombra De árvores alheias.
A realidade Sempre é mais ou menos Do que nós queremos. Só nós somos sempre Iguais a nós-próprios.
Suave é viver só. Grande e nobre é sempre Viver simplesmente. Deixa a dor nas aras Como ex-voto aos deuses.
Vê de longe a vida. Nunca a interrogues. Ela nada pode Dizer-te. A resposta Está além dos deuses.
Mas serenamente Imita o Olimpo No teu coração. Os deuses são deuses Porque não se pensam.
(Ricardo Reis) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: FERNANDO PESSOA - COMPRE 1 LEVE 5 Qua Ago 05, 2009 5:46 pm | |
| Autopsicografia
O poeta é um fingidor. Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve, Na dor lida sentem bem, Não as duas que ele teve, Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda Gira, a entreter a razão, Esse comboio de corda Que se chama coração.
Fernando Pessoa, in 'Cancioneiro' | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: FERNANDO PESSOA - COMPRE 1 LEVE 5 Qui Ago 06, 2009 4:20 pm | |
| Citações de Fernando Pessoa:
Vivo sempre no presente. O futuro, não o conheço. O passado, já o não tenho Todos os problemas são insolúveis. A essência de haver um problema é não haver solução. Procurar um facto significa não haver um facto. Pensar é não saber existir
Ser compreendido é prostituir-se
Busco-me e não me encontro. Pertenço a horas crisântemos, nítidas em alongamentos de jarros. Deus fez da minha alma uma coisa decorativa
O que há de mais reles nos sonhos é que todos os têm
A natureza é a diferença entre a alma e Deus
Não há critério seguro para distinguir o homem dos animais
A ironia é o primeiro indício de que a consciência se tornou consciente
Quem sou eu para mim? Só uma sensação minha
Hei-de por força dizer o que me parece, visto que sou eu
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| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: FERNANDO PESSOA - COMPRE 1 LEVE 5 Qui Ago 06, 2009 4:21 pm | |
| Mar Português
Ó mar salgado, quanto do teu sal São lágrimas de Portugal! Por te cruzarmos, quantas mães choraram, Quantos filhos em vão rezaram! Quantas noivas ficaram por casar Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena Se a alma nao é pequena. Quem quer passar além do Bojador Tem que passar além da dor. Deus ao mar o perigo e o abismo deu, Mas nele é que espelhou o céu.
Fernando Pessoa, in Mensagem
Última edição por Anarca em Qui Ago 06, 2009 4:29 pm, editado 1 vez(es) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: FERNANDO PESSOA - COMPRE 1 LEVE 5 Qui Ago 06, 2009 4:24 pm | |
| A Arte de Representar
A base da representação é a falsidade. A arte do ator consiste em servir-se do drama do autor para mostrar por meio dele a sua capacidade de interpretação. A peça é como uma barra onde o actor mostra as suas habilidades ginásticas. É apenas limitado pelas condições necessárias de uma barra: pode fazer com ela apenas um número limitado de coisas, mas pode fazer de mil formas individuais. A representação, repito, tem todo o atractivo de uma falsificação. Todos adoramos um falsificador. É um sentimento muito humano e completamente instintivo. Todos adoramos a trapaça e a imitação. A representação une e intensifica, por meio do carácter material e vital das suas manifestações, todos os baixos instintos do instinto artístico — o instinto do enigma, o instinto do trapézio (...). É popular e apreciado por estas razões, ou antes, por esta razão. A sede de glória do artista é feita carne na sede de aplauso do actor. Todo o aparecimento em público é baixo. Todas as assembleias são multidões, e se não suadas de corpo, pelo menos suadas de emoções. Todos os espíritos grosseiros adoram falar. Ser falador é já por si vulgar. A única coisa que torna a verbosidade interessante é a profanidade e a obscenidade, pois estas coisas vão "a carácter" com ela. A verbosidade, sem palavras sujas e frases grosseiras é feminina e, portanto, vulgar.
Fernando Pessoa, in 'Ideias Estéticas - Da Literatura' | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: FERNANDO PESSOA - COMPRE 1 LEVE 5 Qui Ago 06, 2009 4:26 pm | |
| Citações de Fernando Pessoa:
A experiência directa é o subterfúgio, ou o esconderijo, daqueles que são desprovidos de imaginação Narrar é criar, pois viver é apenas ser vivido
Na vida de hoje, o mundo só pertence aos estúpidos, aos insensíveis e aos agitados. O direito a viver e a triunfar conquista-se hoje quase pelos mesmos processos por que se conquista o internamento num manicómio: a incapacidade de pensar, a amoralidade e a hiperexcitação
O homem vulgar, por mais dura que lhe seja a vida, tem ao menos a felicidade de a não pensar
Pensar é destruir. O próprio processo do pensamento o indica para o mesmo pensamento, porque pensar é decompor
O entusiasmo é uma grosseria
A arte mente porque é social
O tédio é a falta de uma mitologia. A quem não tem crenças, até a dúvida é impossível, até o cepticismo não tem força para desconfiar
O olfacto é uma vista estranha. Evoca paisagens sentimentais por um desenhar súbito do subconsciente
Saber iludir-se bem é a primeira qualidade do estadista
Manda quem não sente. Vence quem pensa só o que precisa para vencer
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| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: FERNANDO PESSOA - COMPRE 1 LEVE 5 Qui Ago 06, 2009 4:28 pm | |
| D. SEBASTIÃO Rei de Portugal
Louco, sim, louco, porque quis grandeza Qual a Sorte a não dá. Não coube em mim minha certeza; Por isso onde o areal está Ficou meu ser que houve, não o que há.
Minha loucura, outros que me a tomem Com o que nela ia. Sem a loucura que é o homem Mais que a besta sadia, Cadáver adiado que procria?
Fernando Pessoa, in Mensagem | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: FERNANDO PESSOA - COMPRE 1 LEVE 5 Qui Ago 06, 2009 4:30 pm | |
| O Problema da Sinceridade do Poeta
O poeta superior diz o que efectivamente sente. O poeta médio diz o que decide sentir. O poeta inferior diz o que julga que deve sentir. Nada disto tem que ver com a sinceridade. Em primeiro lugar, ninguém sabe o que verdadeiramente sente: é possível sentirmos alívio com a morte de alguém querido, e julgar que estamos sentindo pena, porque é isso que se deve sentir nessas ocasiões. A maioria da gente sente convencionalmente, embora com a maior sinceridade humana; o que não sente é com qualquer espécie ou grau de sinceridade intelectual, e essa é que importa no poeta. Tanto assim é que não creio que haja, em toda a já longa história da Poesia, mais que uns quatro ou cinco poetas, que dissessem o que verdadeiramente, e não só efectivamente, sentiam. Há alguns, muito grandes, que nunca o disseram, que foram sempre incapazes de o dizer. Quando muito há, em certos poetas, momentos em que dizem o que sentem.
Aqui e ali o disse Wordsworth. Uma ou duas vezes o disse Coleridge; pois a Rima do Velho Nauta e Kubla Khan são mais sinceros que todo o Milton, direi mesmo que todo o Shakespeare. Há apenas uma reserva com respeito a Shakespeare: é que Shakespeare era essencial e estruturalmente factício; e por isso a sua constante insinceridade chega a ser uma constante sinceridade, de onde a sua grandeza. Quando um poeta inferior sente, sente sempre por caderno de encargos. Pode ser sincero na emoção: que importa, se o não é na poesia? Há poetas que atiram com o que sentem para o verso; nunca verificaram que o não sentiram. Chora Camões a perda da alma sua gentil; e afinal quem chora é Petrarca. Se Camões tivesse tido a emoção sinceramente sua, teria encontrado uma forma nova, palavras novas — tudo menos o soneto e o verso de dez sílabas. Mas não: usou o soneto em decassílabos como usaria luto na vida. O meu mestre Caeiro foi o único poeta inteiramente sincero do mundo.
Fernando Pessoa, in 'Ideias Estéticas - Da Literatura' | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: FERNANDO PESSOA - COMPRE 1 LEVE 5 Sex Ago 07, 2009 1:17 pm | |
| O Infante
Deus quer, o homem sonha, a obra nasce. Deus quis que a terra fosse toda uma, Que o mar unisse, já não separasse. Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,
E a orla branca foi de ilha em continente, Clareou, correndo, até ao fim do mundo, E viu-se a terra inteira, de repente, Surgir, redonda, do azul profundo.
Quem te sagrou criou-te português. Do mar e nós em ti nos deu sinal. Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez. Senhor, falta cumprir-se Portugal!
Fernando Pessoa, in Mensagem | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: FERNANDO PESSOA - COMPRE 1 LEVE 5 Sex Ago 07, 2009 1:28 pm | |
| Citações de Fernando Pessoa:
Todo o gesto é um acto revolucionário Saber não ter ilusões é absolutamente necessário para se poder ter sonhos
Porque é bela a arte? Porque é inútil. Porque é feia a vida? Porque é toda fins e propósitos e intenções
Quando escrevo, visito-me solenemente
E assim como sonho, raciocino se quiser, porque isso é apenas uma outra espécie de sonho Não há felicidade senão com conhecimento. Mas o conhecimento da felicidade é infeliz; porque conhecer-se feliz é conhecer-se passando pela felicidade, e tendo, logo já, que deixá-la atrás. Saber é matar, na felicidade como em tudo. Não saber, porém, é não existir
Gostava de estar no campo para poder gostar de estar na cidade
Sou um homem para quem o mundo exterior é uma realidade interior
Ter opiniões definidas e certas, instintos, paixões e carácter fixo e conhecido - tudo isto monta ao horror de tornar a nossa alma num facto, de a materializar e tornar exterior
Com uma tal falta de gente coexistível, como há hoje, que pode um homem de sensibilidade fazer senão inventar os seus amigos, ou quando menos, os seus companheiros de espírito? | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: FERNANDO PESSOA - COMPRE 1 LEVE 5 Sex Ago 07, 2009 1:29 pm | |
| A Inutilidade da Crítica
Que a obra de boa qualidade sempre se destaca é uma afirmação sem valor, se aplicada a uma obra de qualidade realmente boa e se por "destaca" quer-se fazer referência à aceitação na sua própria época. Que a obra de boa qualidade sempre se destaca, no curso de sua futuridade, é verdadeiro; que a obra de boa qualidade, mas de segunda ordem sempre se destaca na sua própria época, é também verdadeiro. Pois como há-de um crítico julgar? Quais as qualidades que formam, não o incidental, mas o crítico competente? Um conhecimento da arte e da literatura do passado, um gosto refinado por esse conhecimento, e um espírito judicioso e imparcial. Qualquer coisa menos do que isto é fatal ao verdadeiro jogo das faculdades críticas. Qualquer coisa mais do que isto é já espírito criativo e, portanto, individualidade; e individualidade significa egocentrismo e certa impermeabilidade ao trabalho alheio.
Quão competente é, porém, o crítico competente? Suponhamos que uma obra de arte profundamente original surja diante dos seus olhos. Como a julga ele? Comparando-a com as obras de arte do passado. Se for original, porém afastar-se-á em alguma coisa - e quanto mais original mais se afastará - das obras de arte do passado. Na medida em que o fizer, parecerá não se conformar com o cânone estético que o crítico encontra firmado no seu pensamento. E se a sua originalidade, em vez de jazer num afastamento daqueles velhos padrões, encontra-se num uso deles em linhas mais rigorosamente construtivas - como Milton usou os antigos - aceitará o crítico esse melhoramento como melhoramento, ou como imitação o uso daqueles padrões? Verá mais o construtor do que o utilizador de materiais de construção? Por que deveria ele fazer uma coisa em vez de a coisa melhor? É, de todos os elementos, a construtividade o mais difícil de determinar numa obra... Uma fusão de elementos do passado: verá o critico a fusão dos elementos? Persuadir-se-ia alguém de que se fossem publicados hoje o Paraíso Perdido, ou Hamlet, ou os Sonetos de Shakespeare e de Milton, lograriam eles cotação acima da poesia de Kipling ou de Noyes, ou a de qualquer outro cavalheiro semelhantemente quotidiano? Se alguém se persuadisse disso, seria um louco. A expressão é curta (?), não doce, mas pretende-se que seja apenas verdadeira. De todos os lados ouvimos o clamor de que o nosso tempo necessita de um grande poeta. O vazio central de todas as modernas realizações é uma coisa mais para se sentir do que para ser falada. Se o grande poeta tivesse de aparecer, quem estaria presente para descobri-lo? Quem pode dizer se ele já não apareceu? O público leitor vê nos jornais notícias das obras daqueles homens cuja influência e camaradagens tornaram-nos conhecidos, ou cuja secundariedade fez que fossem aceitos pela multidão. O grande poeta pode já ter aparecido; a sua obra teria sido noticiada nalgumas poucas palavras de vient-de-paraître em algum sumário bibliográfico de um jornal de crítica.
Fernando Pessoa, in 'Ideias Estéticas - Da Literatura' | |
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| Assunto: Re: FERNANDO PESSOA - COMPRE 1 LEVE 5 | |
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