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| MIGUEL TORGA - O POETA AUTÊNTICO | |
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Autor | Mensagem |
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Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: MIGUEL TORGA - O POETA AUTÊNTICO Qua Out 14, 2009 11:44 pm | |
| Prospecção
Não são pepitas de oiro que procuro. Oiro dentro de mim, terra singela! Busco apenas aquela Universal riqueza Do homem que revolve a solidão: O tesoiro sagrado De nenhuma certeza, Soterrado Por mil certezas de aluvião. Cavo, Lavo, Peneiro, Mas só quero a fortuna De me encontrar. Poeta antes dos versos E sede antes da fonte. Puro como um deserto. Inteiramente nu e descoberto.
(Miguel Torga) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: MIGUEL TORGA - O POETA AUTÊNTICO Qui Out 15, 2009 11:05 pm | |
| O regresso
"Lá vem a Nau Catrineta Que tem muito que contar. Ouvi, agora, Senhores Uma história de pasmar..." A Mãe correu à varanda, Bem longe de imaginar Que o alarme desejado Vinha dum cego a cantar: "Passava mais de ano e dia Que iam na volta do mar, Já não tinham que comer, Já não tinham que manjar..." A Mãe abriu num soluço O coração a sangrar, Porque a sola era tão rija Que a não podiam tragar... "Deitam sortes à ventura Qual se havia de matar". (A Mãe tinha pão na arca E não lho podia dar!) "Logo foi cair a sorte..." (Que sorte tão singular!). O gageiro olhava, olhava, Mas só via céu e mar... "Alvíssaras, Capitão..." E o vento a enrodilhar A voz do homem da gávea Na do ceguinho a cantar! "A minha alma é só de Deus, O corpo dou-o eu ao mar..." A Mãe, que nada podia, Já só podia rezar... "Deu um estoiro o demónio, Acalmaram vento e mar." E quando o cego acabou Estavam em terra a varar...
(Miguel Torga) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: MIGUEL TORGA - O POETA AUTÊNTICO Sex Out 16, 2009 8:35 pm | |
| Aos Poetas
Somos nós As humanas cigarras! Nós, Desde os tempos de Esopo conhecidos. Nós, Preguiçosos insectos perseguidos. Somos nós os ridículos comparsas Da fábula burguesa da formiga. Nós, a tribo faminta de ciganos Que se abriga Ao luar. Nós, que nunca passamos A passar!...
Somos nós, e só nós podemos ter Asas sonoras, Asas que em certas horas Palpitam, Asas que morrem, mas que ressuscitam Da sepultura! E que da planura Da seara Erguem a um campo de maior altura A mão que só altura semeara.
Por isso a vós, Poetas, eu levanto A taça fraternal deste meu canto, E bebo em vossa honra o doce vinho Da amizade e da paz! Vinho que não é meu, mas sim do mosto que a beleza traz!
E vos digo e conjuro que canteis! Que sejais menestreis De uma gesta de amor universal! Duma epopeia que não tenha reis, Mas homens de tamanho natural! Homens de toda a terra sem fronteiras! De todos os feitios e maneiras, Da cor que o sol lhes deu à flor da pele! Crias de Adão e Eva verdadeiras! Homens da torre de Babel!
Homens do dia a dia Que levantem paredes de ilusão! Homens de pés no chão, Que se calcem de sonho e de poesia Pela graça infantil da vossa mão!
(Miguel Torga) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: MIGUEL TORGA - O POETA AUTÊNTICO Dom Out 18, 2009 1:04 pm | |
| Mãe
S. Martinho de Anta, 1 de Junho
Mãe: Que desgraça na vida aconteceu, Que ficaste insensível e gelada? Que todo o teu perfil se endureceu Numa linha severa e desenhada?
Como as estátuas, que são gente nossa Cansada de palavras e ternura, Assim tu me pareces no teu leito. Presença cinzelada em pedra dura, que não tem coração dentro do peito.
Chamo aos gritos por ti - não me respondes. Beijo-te as mãos e o rosto - sinto frio. Ou és outra, ou me enganas, ou te escondes Por detrás do terror deste vazio.
Mãe: Abre os olhos ao menos, diz que sim! Diz que me vês ainda, que me queres. Que és a eterna mulher entre as mulheres. Que nem a morte te afastou de mim!
(Miguel Torga) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: MIGUEL TORGA - O POETA AUTÊNTICO Ter Out 20, 2009 8:46 pm | |
| Livro de Horas
Aqui diante de mim, eu, pecador, me confesso de ser assim como sou. Me confesso o bom e o mau que vão ao leme da nau nesta deriva em que vou.
Me confesso possesso das virtudes teologais, que são três,
e dos pecados mortais, que são sete, quando a terra não repete que são mais.
Me confesso o dono das minhas horas O dos facadas cegas e raivosas, e o das ternuras lúcidas e mansas.
E de ser de qualquer modo andanças do mesmo todo.
Me confesso de ser charco e luar de charco, à mistura. De ser a corda do arco que atira setas acima e abaixo da minha altura.
Me confesso de ser tudo que possa nascer em mim. De ter raízes no chão desta minha condição. Me confesso de Abel e de Caim.
Me confesso de ser Homem. De ser um anjo caído do tal céu que Deus governa; de ser um monstro saído do buraco mais fundo da caverna.
Me confesso de ser eu. Eu, tal e qual como vim para dizer que sou eu aqui, diante de mim!
(Miguel Torga) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: MIGUEL TORGA - O POETA AUTÊNTICO Qua Out 21, 2009 8:36 pm | |
| Depoimento
Deponho no processo do meu crime. Sou testemunha E réu E vítima E juiz Juro
Que havia um muro, E na face do muro uma palavra a giz. MERDA! - lembro-me bem. - Crianças... - disse alguém que ia a passar. Mas voltei novamente a soletar O vocábulo indecente, E de repente Como quem adivinha, Numa tristeza já de penitente Vi que a letra era minha...
(Miguel Torga) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: MIGUEL TORGA - O POETA AUTÊNTICO Qui Out 22, 2009 10:55 pm | |
| Prece
Senhor, deito-me na cama Coberto de sofrimento; E a todo o comprimento Sou sete palmos de lama: Sete palmos de excremento Da terra-mãe que me chama.
Senhor, ergo-me do fim Desta minha condição Onde era sim, digo não Onde era não digo sim; Mas não calo a voz do chão Que grita dentro de mim.
Senhor, acaba comigo Antes do dia marcado; Um golpe bem acertado, O tiro de um inimigo..... Qualquer pretexto tirado Dos sarcasmos que te digo.
(Miguel Torga) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: MIGUEL TORGA - O POETA AUTÊNTICO Sáb Out 24, 2009 8:56 pm | |
| Transfiguração
Tens agora outro rosto, outra beleza: Um rosto que é preciso imaginar, E uma beleza mais furtiva ainda... Assim te modelaram caprichosas, Mãos irreais que tornam irreal O barro que nos foge da retina. Barro que em ti passou de luz carnal A bruma feminina...
Mas nesse novo encanto Te conjuro Que permaneças. Distante e preservada na distância. Olímpica recusa, disfarçada De terrena promessa Feita aos olhos tentados e descrentes. Nenhum mito regressa.... Todas as deusas são mulheres ausentes...
(Miguel Torga) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: MIGUEL TORGA - O POETA AUTÊNTICO Dom Out 25, 2009 9:40 pm | |
| Brasil
Brasil onde vivi, Brasil onde penei, Brasil dos meus assombros de menino: Há quanto tempo já que te deixei, Cais do lado de lá do meu destino!
Que milhas de angústia no mar da saudade! Que salgado pranto no convés da ausência! Chegar. Perder-te mais. Outra orfandade, Agora sem o amparo da inocência.
Dois pólos de atracção no pensamento! Duas ânsias opostas nos sentidos! Um purgatório em que o sofrimento Nunca avista um dos céus apetecidos.
Ah, desterro do rosto em cada face, Tristeza dum regaço repartido! Antes o desespero naufragasse Ente o chão encontrado e o chão perdido.
(Miguel Torga) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: MIGUEL TORGA - O POETA AUTÊNTICO Ter Out 27, 2009 1:56 pm | |
| Ao mar
Água, sal e vontade - a vida! Azul - a cor do céu e da inocência. Um lenço a colorir a despedida Da galera da ausência...
Mar tenebroso! Mar fechado e rugoso Sobre um casto jardim adormecido! Mar de medusas que ninguém semeia, Criadas com mistério e com areia, Perfeitas de beleza e de sentido!
Vem a sede da terra e não se acalma! Vem a força do mundo e não te doma! Impenitente e funda, a tua alma Guarda-se no cristal duma redoma.
Guarda-se purificada em leve espuma, Renda da sua túnica de linho. Guarda-se aberta em sol, sagrada em bruma, Sem amor, sem ternura e sem caminho.
O navio do sonho foi ao fundo, E o capitão, despido, jaz ao leme, Branco nos ossos descarnados; Uma alga no peito, a flor do mundo, Uma fibra de amor que vive e treme De ouvir segredos vãos, petrificados.
Uma ilusão enfuna e enxuga a vela, Uma desilusão a rasga e molha; Morta a magia que pintava a tela, O mesmo olhar de há pouco já não olha.
Na órbita vazia um cego ouriço Pica o silêncio leve que perpassa... Pica o novo feitiço Que nasce do final de uma desgraça.
Mas nem corais, nem polvos, nem quimeras Sobem à tona das marés... O navio encalhado e as suas eras Lá permanecem a milhentos pés.
Soterrados em verde, negro e vago, Nenhum sol os aquece. Habitantes do lago Do esquecimento, só a sombra os tece...
Ela que és tu, anónimo oceano, Coração ciumento e namorado! Ela que és tu, arfar viril e plano, Largo como um abraço descuidado!
Tu, mar fechado, aberto e descoberto Com bússolas e gritos de gajeiro! Tu, mar salgado, lírico, coberto De lágrimas, iodo e nevoeiro!
(Miguel Torga) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: MIGUEL TORGA - O POETA AUTÊNTICO Ter Out 27, 2009 10:49 pm | |
| Segredo
Sei um ninho. E o ninho tem um ovo. E o ovo, redondinho, Tem lá dentro um passarinho Novo.
Mas escusam de me atentar: Nem o tiro, nem o ensino. Quero ser um bom menino E guardar Este segredo comigo. E ter depois um amigo Que faça o pino A voar...
(Miguel Torga) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: MIGUEL TORGA - O POETA AUTÊNTICO Sex Out 30, 2009 10:33 pm | |
| Ciganos
Tudo o que voa é ave. Desta janela aberta A pena que se eleva é mais suave E a folha que plana é mais liberta.
Nos seus braços azuis o céu aquece Todo o alado movimento. É no chão que arrefece O que não pode andar no firmamento.
Outro levante, pois, ciganos! Outra tenda sem pátria mais além! Desumanos São os sonhos, também...
(Miguel Torga) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: MIGUEL TORGA - O POETA AUTÊNTICO Dom Nov 01, 2009 1:38 pm | |
| Guerra Civil
E contra mim que luto Não tenho outro inimigo. O que penso O que sinto O que digo E o que faço E que pede castigo E desespera a lança no meu braço
Absurda aliança De criança E de adulto. O que sou é um insulto Ao que não sou E combato esse vulto Que à traição me invadiu e me ocupou
Infeliz com loucura e sem loucura, Peco à vida outra vida, outra aventura, Outro incerto destino. Não me dou por vencido Nem convencido E agrido em mim o homem e o menino
(Miguel Torga) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: MIGUEL TORGA - O POETA AUTÊNTICO Seg Nov 02, 2009 11:54 pm | |
| Comunicado
Na frente ocidental nada de novo. O povo Continua a resistir. Sem ninguém que lhe valha, Geme e trabalha Até cair.
(Miguel Torga) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: MIGUEL TORGA - O POETA AUTÊNTICO Qua Nov 04, 2009 11:16 pm | |
| Fábula da fábula
Era uma vez Uma fábula famosa, Alimentícia E moralizadora, Que, em verso e prosa, Toda gente Inteligente, Prudente E sabedora Repetia Aos filhos, Aos netos E aos bisnetos. À base duns insectos, De que não vale a pena fixar o nome, A fábula garantia Que quem cantava Morria De fome.
E realmente... Simplesmente, Enquanto a fábula contava, Um demônio secreto segredava Ao ouvido secreto De cada criatura Que quem não cantava Morria de fartura.
(Miguel Torga) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: MIGUEL TORGA - O POETA AUTÊNTICO Qui Nov 05, 2009 10:52 pm | |
| Súplica
Agora que o silêncio é um mar sem ondas, E que nele posso navegar sem rumo, Não respondas Às urgentes perguntas Que te fiz. Deixa-me ser feliz Assim, Já tão longe de ti como de mim.
Perde-se a vida a desejá-la tanto. Só soubemos sofrer, enquanto O nosso amor Durou. Mas o tempo passou, Há calmaria... Não perturbes a paz que me foi dada. Ouvir de novo a tua voz seria Matar a sede com água salgada.
(Miguel Torga) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: MIGUEL TORGA - O POETA AUTÊNTICO Sex Nov 06, 2009 10:08 pm | |
| De tanto olhar o sol
De tanto olhar o sol, queimei os olhos, De tanto amar a vida enlouqueci. Agora sou no mundo esta negrura. À procura Da luz e do juízo que perdi.
(Miguel Torga) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: MIGUEL TORGA - O POETA AUTÊNTICO Qua Dez 22, 2010 10:36 pm | |
| Sonho Perdido
Como foi que o meu sonho se perdeu No liso descampado desta vida? Distraída Atenção Que tão ingloriamente empobreceu Quem não tinha outro vinho e outro pão!
Na fundura dos bolsos não encontro Nem sequer a lembrança desenhada Do seu calor! Perdi o sonho... E resta-me o pudor Deste triste poema ressequido... Perdi o sonho... E nunca se encontrou Nenhum sonho perdido.
(Cântico do Homem - Miguel Torga) | |
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