| | ANTÓNIO GEDEÃO - O POETA PROFESSOR | |
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Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: ANTÓNIO GEDEÃO - O POETA PROFESSOR Seg Jul 13, 2009 10:41 pm | |
| António Gedeão, (Rómulo Vasco da Gama de Carvalho), nasceu em Lisboa em 1906. Criança precoce, aos 5 anos escreveu os seus primeiros poemas e aos 10 decidiu completar "Os Lusíadas" de Camões. A par desta inclinação para as letras, ao entrar para o liceu Gil Vicente, tomou contacto com as ciências e foi aí que despertou nele um novo interesse.
Em 1931 licenciou se em Ciências Físico Químicas pela Faculdade de Ciências da Universidade do Porto e em 1932 conclui o curso de Ciências Pedagógicas na Faculdade de Letras do Porto, prenunciando assim qual seria a sua actividade principal daí para a frente e durante 40 anos: professor e pedagogo. Exigente e comunicador por excelência, para Rómulo de Carvalho ensinar era uma paixão e uma dedicação. E assim, além da colaboração como co director da "Gazeta de Física" a partir de 1946, concentrou durante muitos anos, os seus esforços no ensino, dedicando se, inclusivé, à elaboração de compêndios escolares, inovadores pelo grafismo e forma de abordar matérias tão complexas como a física e a química. Dedicação estendida, a partir de 1952, à difusão científica a um nível mais amplo através da colecção "Ciência Para Gente Nova" e muitos outros títulos, entre os quais "Física para o Povo", cujas edições acompanham os leigosinteressados pela ciência até meados da década de 1970.
Apesar da intensa actividade científica, Rómulo de Carvalho nunca esqueceu a arte das palavras e continuou sempre a escrever poesia. Porém, não a considerando de qualidade e pensando que nunca seria útil a ninguém, nunca tentou publicá la, preferindo destruí la. Só em 1956, após ter participado num concurso de poesia de que tomou conhecimento no jornal, publicou, aos 50 anos, o primeiro livro de poemas "Movimento Perpétuo" com o pseudónimo António Gedeão. Continuou depois a publicar poesia, aventurando se, anos mais tarde, no teatro, no ensaio e na ficção.
Nos seus poemas há uma simbiose perfeita entre a ciência e a poesia, a vida e o sonho, a lucidez e a esperança. Aí reside a sua originalidade, difícil de catalogar, originada por uma vida em que sempre coexistiram esses dois interesses totalmente distintos...
A poesia de Gedeão é bastante comunicativa e marca toda uma geração que, reprimida por um regime ditatorial e atormentada por uma guerra, cujo fim não se adivinhava, se sentia profundamente tocada pelos valores expressos pelo poeta e assim se atrevia a acreditar que, através do sonho, era possível encontrar o caminho para a liberdade. É deste modo que "Pedra Filosofal", musicada por Manuel Freire, se torna num hino à liberdade e ao sonho. Mais tarde, em 1972, José Nisa compõe doze músicas com base em poemas de Gedeão e produz o álbum "Fala do Homem Nascido".
Nos anos seguintes dedicou se por inteiro à investigação, publicando numerosos livros, tanto de divulgação científica, como de história da ciência. Gedeão também continuou a sonhar, mas o fim aproximava se e o desejo da morrer determinou, em 1984, a publicação de Poemas Póstumos.
Em 1990, já com 83 anos, Rómulo de Carvalho assumiu a direcção do Museu Maynense da Academia das Ciências de Lisboa, sete anos depois de se ter tornado sócio correspondente da Academia de Ciências, função que desempenharia até ao fim dos seus dias.
Quando completou 90 anos de idade, a sua vida foi alvo de uma homenagem a nível nacional. O professor, investigador, pedagogo e historiador da ciência, bem como o poeta, foi reconhecido publicamente por personalidades da política, da ciência, das letras e da música. Faleceu em 1997. | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: ANTÓNIO GEDEÃO - O POETA PROFESSOR Seg Jul 13, 2009 10:46 pm | |
| Adeus, Lisboa
Vou-me até à Outra Banda no barquinho da carreira. Faz que anda mas não anda; parece de brincadeira. Planta-se o homem no leme. Tudo ginga, range e treme. Bufa o vapor na caldeira. Um menino solta um grito; assustou-se com o apito do barquinho da carreira. Todo ancho, tremelica como um boneco de corda. Nem sei se vai ou se fica. Só se vê que tremelica e oscila de borda a borda.
Chapas de sol, coruscantes como lâminas de espadas, fendem as águas rolantes esparrinhando flamejantes lantejoulas nacaradas. Sob o dourado chuveiro, o barquinho terno e mole, vai-se afastando, ronceiro, na peugada do Sol.
A cada volta das pás moendo as águas vizinhas, nos remoinhos que faz, nos salpicos que me traz e me enchem de camarinhas, há fagulhas rutilantes, esquírolas de marcassites, polimentos de pirites, clivagens de diamantes,
Numa hipnose coletiva, como um friso de embruxados, ao longe os olhos cravados em transe de expectativa, todos juntos, na amurada, numa sonolência de ópio, vemos, na tarde pasmada, Lisboa televisada num vasto cinemascópio. O sol e a água conspiram num conluio de beleza, de elixires que se evadiram de feiticeira represa. Fulva, no céu incendido, em compostura de pose, a cidade é colorido cenário de apoteose. Há lencinhos agitados nos olhos de todos nós, engulhos de namorados, embargamentos na voz. Nesta quermesse do ar, neste festival de tons, quem se atreve a acreditar que os homens não sejam bons?
Adeus, adeus, ribeirinha cidade dos calafates, rosicler de água-marinha, pedra de muitos quilates. Iça as velas, marinheiro, com destino a Calecu. Oh que ventinho rasteiro! Que mar tão cheio e tão nu! Ó da gávea! Põe-te alerta! Tem tento nos areais. Cá vou eu à descoberta das índias Orientais. Não tenho medo de nada, receio de coisa nenhuma.
A vida é leve e arrendada como esta réstea de espuma. Toda a gente é séria e é boa! Não existem homens maus! Adeus, Tejo! Adeus Lisboa! Adeus, Ribeira das Naus! Adeus! Adeus! Adeus! Adeus!
(Antônio Gedeão)
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| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: ANTÓNIO GEDEÃO - O POETA PROFESSOR Qua Jul 15, 2009 10:27 pm | |
| Estrela da Manhã
Numa qualquer manhã, um qualquer ser, vindo de qualquer pai, acorda e vai. Vai. Como se cumprisse um dever.
Nas incógnitas mãos transporta os nossos gestos; nas inquietas pupilas fermenta o nosso olhar. E em seu impessoal desejo latejam todos os restos de quantos desejos ficaram antes por desejar.
Abre os olhos e vai.
Vai descobrir as velas dos moinhos e as rods que os eixos movem, o tear que tece o linho, a espuma roxa dos vinhos, incêncio na face jovem.
Cego, vê, de olhos abertos. Sozinho, a multidão vai com ele. Bagas de instintos despertos ressuma-lhe à flor da pele.
Vai, belo monstro. Arranca as florestas com os teus dentes. Imprime na areia branca teus voluntariosos pés incandescentes.
Vai
Segue o teu meridiano, esse, o que divide ao meio teus hemisférios cerebrais; o plano de barro que nunca endurece, onde a memória da espécie grava os sonos imortais.
Vai
Lábios húmidos do amor da manhã, polpas de cereja. Desdobra-te e beija em ti mesmo a carne sã.
Vai
À tua cega passagem a convulsão da folhagem diz aos ecos «tem que ser».
O mar que rola e se agita, toda a música infinita, tudo grita «tem que ser».
Cerra os dentes, alma aflita. Tudo grita «Tem que ser».
(Antônio Gedeão)
Última edição por Anarca em Sáb Jul 18, 2009 6:52 pm, editado 1 vez(es) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: ANTÓNIO GEDEÃO - O POETA PROFESSOR Sáb Jul 18, 2009 6:51 pm | |
| POEMA PARA GALILEO
Estou olhando o teu retrato, meu velho pisano, aquele teu retrato que toda a gente conhece, em que a tua bela cabeça desabrocha e floresce sobre um modesto cabeção de pano. Aquele retrato da Galeria dos Oficios da tua velha Florença. (Não, não, Galileo! Eu não disse Santo Oficio. Disse Galeria dos Oficios.) Aquele retrato da Galeria dos Oficios da requintada Florença. Lembras-te? A Ponte Vecchio, a Loggia, a Piazza della Signoria ... Eu sei ... Eu sei ... As margens doces do Amo às horas pardas da melancolia. Ai que saudade, Galileo Galilei! Olha. Sabes? Lá em Florença está guardado um dedo da tua mão direita num relicário. Palavra de honra que está! As voltas que o mundo dá! Se calhar até há gente que pensa que entraste no calendário. Eu queria agradecer-te, Galileo, a inteligência das coisas que me deste. Eu, quantos milhões de homens como eu a quem tu esclareceste, ia jurar - que disparate, Galileo! - e jurava a pés juntos e apostava a cabeça sem a menor hesitação - que os corpos caem tanto mais depressa quanto mais pesados são.
Pois não é evidente, Galileo? Quem acredita que um penedo caia com a mesma rapidez que um botão de camisa ou que um seixo da praia? Esta era a inteligência que Deus nos deu. Estava agora a lembrar-me, Galileo, daquela cena em que tu estavas sentado num escabelo e tinhas à tua frente um friso de homens doutos, hirtos, de toga e de capelo a olharem-te severamente. Estavam todos a ralhar contigo, que parecia impossível que um homem da tua idade e da tua condição, se estivesse tornando num perigo para a Humanidade e para a Civilização. Tu, embaraçado e comprometido, em silêncio mordiscavas os lábios, percorrias, cheio de piedade, os rostos impenetráveis daquela fila de sábios. Teus olhos habituados à observação dos satélites e das estrelas, desceram lá das suas alturas e poisaram, como aves aturdidas - parece-me que estou a vê-las -, nas faces grávidas daquelas reverendíssimas criaturas. E tu foste dizendo a tudo que sim, que sim senhor, que era tudo tal qual conforme suas eminências desejavam, e dirias que o Sol era quadrado e a Lua pentagonal e que os astros bailavam e entoavam à meia-noite louvores à harmonia universal.
E juraste que nunca mais repetirias nem a ti mesmo, na própria intimidade do teu pensamento, livre e calma, aquelas abomináveis heresias que ensinavas e escrevias para eterna perdição da tua alma. Ai, Galileo! Mal sabiam os teus doutos juízes, grandes senhores deste pequeno mundo, que assim mesmo, empertigados nos seus cadeirões de braços, andavam a correr e a rolar pelos espaços à razão de trinta quilómetros por segundo. Tu é que sabias, Galileo Galilei. Por isso eram teus olhos misericordiosos, por isso era teu coração cheio de piedade, piedade pelos homens que não precisam de sofrer, homens ditosos a quem Deus dispensou de buscar a verdade. Por isso estoicamente, mansamente, resististe a todas as torturas, a todas as angústias, a todos os contratempos, enquanto eles, do alto inacessível das suas alturas, foram caindo, caindo, caindo, caindo, caindo sempre, e sempre, ininterruptamente, na razão directa dos quadrados dos tempos.
(Antônio Gedeão) | |
| | | Anarca
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| Assunto: Re: ANTÓNIO GEDEÃO - O POETA PROFESSOR Sex Jul 24, 2009 10:03 pm | |
| Poema do Amor
Este é o poema do amor.
O poema que o poeta propositadamente escreveu só para falar de amor, de amor, de amor, de amor, para repetir muitas vezes amor, amor, amor, amor. Para que um dia, quando o Cérebro Electrónico contar as palavras que o poeta escreveu, tantos que, tantos se, tantos lhe, tantos tu, tantos ela, tantos eu, conclua que a palavra que o poeta mais vezes escreveu foi amor, amor, amor.
Este é o poema do amor.
(Antônio Gedeão) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: ANTÓNIO GEDEÃO - O POETA PROFESSOR Sex Jul 24, 2009 10:09 pm | |
| Viagem
Aparelhei o barco da ilusão E reforcei a fé de marinheiro. Era longe o meu sonho, e traiçoeiro O mar... (Só nos é concedida Esta vida Que temos; E é nela que é preciso Procurar O velho paraíso Que perdemos). Prestes, larguei a vela E disse adeus ao cais, à paz tolhida. Desmedida, A revôlta imensidão Transforma dia a dia a embarcação Numa errante e alada sepultura... Mas corto as ondas sem desanimar. Em qualquer aventura, O que importa é partir, não é chegar.
(Antônio Gedeão) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: ANTÓNIO GEDEÃO - O POETA PROFESSOR Sex Jul 24, 2009 10:10 pm | |
| Gota de água Eu, quando choro, não choro eu. Chora aquilo que nos homens em todo o tempo sofreu. as lágrimas são minhas mas o choro não é meu.
(Antônio Gedeão) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: ANTÓNIO GEDEÃO - O POETA PROFESSOR Sex Jul 24, 2009 10:11 pm | |
| A minha aldeia
Minha aldeia é todo o mundo. Todo o mundo me pertence. Aqui me encontro e confundo com gente de todo o mundo que a todo o mundo pertence.
Bate o sol na minha aldeia com várias inclinações. Angulo novo, nova ideia; outros graus, outras razões. Que os homens da minha aldeia são centenas de milhões.
Os homens da minha aldeia divergem por natureza. O mesmo sonho os separa, a mesma fria certeza os afasta e desampara, rumorejante seara onde se odeia em beleza.
Os homens da minha aldeia formigam raivosamente com os pés colados ao chão. Nessa prisão permanente cada qual é seu irmão. Valência de fora e dentro ligam tudo ao mesmo centro numa inquebrável cadeia. Longas raízes que imergem, todos os homens convergem no centro da minha aldeia.
(Antônio Gedeão) | |
| | | Anarca
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| Assunto: Re: ANTÓNIO GEDEÃO - O POETA PROFESSOR Dom Jul 26, 2009 9:21 pm | |
| Dia de Natal
Hoje é dia de ser bom. É dia de passar a mão pelo rosto das crianças, de falar e de ouvir com mavioso tom, de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.
É dia de pensar nos outros - coitadinhos - nos que padecem, de lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria, de perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem, de meditar sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria.
Comove tanta fraternidade universal. É só abrir o rádio e logo um coro de anjos, como se de anjos fosse, numa toada doce, de violas e banjos, entoa gravemente um hino ao Criador. E mal se extinguem os clamores plangentes, a voz do locutor anuncia o melhor dos detergentes.
De novo a melopeia inunda a Terra e o Céu e as vozes crescem num fervor patético. (Vossa Excelência verificou a hora exacta em que o Menino Jesus nasceu? Não seja estúpido! Compre imediatamente um relógio de pulso antimagnético. Torna-se difícil caminhar nas preciosas ruas. Toda a gente se acotovela, se multiplica em gestos, esfuziante. Todos participam nas alegrias dos outros como se fossem suas e fazem adeuses enluvados aos bons amigos que passam mais distante.
Nas lojas, na luxúria das montras e dos escaparates, com subtis requintes de bom gosto e de engenhosa dinâmica, cintilam, sob o intenso fluxo de milhares de quilovates, as belas coisas inúteis de plástico, de metal, de vidro e de cerâmica.
Os olhos acorrem, num alvoroço liquefeito, ao chamamento voluptuoso dos brilhos e das cores. É como se tudo aquilo nos dissesse directamente respeito, como se o Céu olhasse para nós e nos cobrisse de bênçãos e favores. A Oratória de Bach embruxa a atmosfera do arruamento. Adivinha~se uma roupagem diáfana a desembrulhar-se no ar. E a gente, mesmo sem querer, entra no estabelecimento e compra - louvado seja o Senhor! - o que nunca tinha pensado comprar.
Mas a maior felicidade é a da gente pequena. Naquela véspera santa a sua comoção é tanta, tanta, tanta, que nem dorme serena.
Cada menino abre um olhinho na noite incerta para ver se a aurora já está desperta. De manhãzinha salta da cama, corre à cozinha mesmo em pijama.
Ah!!!!!!!!!!
Na branda macieza da matutina luz aguarda~o a surpresa do Menino Jesus.
Jesus, doce Jesus, o mesmo que nasceu na manjedoura, veio pôr no sapatinho do Pedrinho uma metralhadora.
Que alegria reinou naquela casa em todo o santo dia! O Pedrinho, estrategicamente escondido atrás das portas, fuzilava tudo com devastadoras rajadas e obrigava as criadas a caírem no chão como se fossem mortas: tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá.
Já está! E fazia-as erguer para de novo matá-las. E até mesmo a mamã e o sisudo papá fingiam que caíam crivados de balas.
Dia de Confraternização Universal, dia de Amor, de Paz, de Felicidade, de Sonhos e Venturas. É dia de Natal. Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade. Glória a Deus nas Alturas.
(Antônio Gedeão) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: ANTÓNIO GEDEÃO - O POETA PROFESSOR Sáb Ago 01, 2009 10:34 pm | |
| Saudades da terra
Uns olhos que me olharam com demora, não sei se por amor se caridade, fizeram-me pensar na morte, e na saudade que eu sentiria se morresse agora. E pensei que da vida não teria nem saudade nem pena de a perder, mas que em meus olhos mortos guardaria certas imagens do que pude ver. Gostei muito da luz. Gostei de vê-la de todas as maneiras, da luz do pirilampo à fria luz da estrela, do fogo dos incêndios à chama das fogueiras. Gostei muito de a ver quando cintila na face de um cristal, quando trespassa, em lâmina tranquila, a poeirenta névoa de um pinhal, quando salta, nas águas, em contorções de cobra, desfeita em pedrarias de lapidado ceptro, quando incide num prisma e se desdobra nas sete cores do espectro. Também gostei do mar. Gostei de vê-lo em fúria quando galga lambendo o dorso dos navios, quando afaga em blandícias de cândida luxúria a pele morna da areia toda eriçada de calafrios. E também gostei muito do Jardim da Estrela com os velhos sentados nos bancos ao sol e a mãe da pequenita a aconchegá-la no carrinho e a adormecê-la e as meninas a correrem atrás das pombas e os meninos a jogarem ao futebol.
A porta do Jardim, no inverno, ao entardecer, à hora em que as árvores começam a tomar formas estranhas, gostei muito de ver erguer-se a névoa azul do fumo das castanhas. Também gostei de ver, na rua, os pares de namorados que se julgam sozinhos no meio de toda a gente, e se amam com os dedos aflitos, entre cruzados, de olhos postos nos olhos, angustiadamente. E gostei de ver as laranjas em montes, nos mercados, e as mulheres a depenarem galinhas e a proferirem palavras grosseiras, e os homens a aguentarem e a travarem os grandes camiões pesados, e os gatos a miarem e a roçarem-se nas pernas das peixeiras. Mas ... saudade, saudade propriamente, essa tenaz que aperta o coração e deixa na garganta um travo adstringente, essa, não. Saudade, se a tivesse, só de Aquela que nas flores se anunciou, se uma saudade alguém pudesse tê-la do que não se passou. De Aquela que morreu antes de eu ter nascido, ou estará por nascer - quem sabe? - ou talvez ande nalgum atalho deste mundo grande para lá dos confins do horizonte perdido. Triste de quem não tem, na hora que se esfuma, saudades de ninguém nem de coisa nenhuma.
(Antônio Gedeão) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: ANTÓNIO GEDEÃO - O POETA PROFESSOR Ter Ago 04, 2009 11:24 pm | |
| Certezas, precisam-se
Preciso urgentemente de adquirir meia dúzia de valores absolutos, inexpugnáveis e impenetráveis, firmes e surdos como rochedos.
Preciso urgentemente de adquirir certezas, certezas inabaláveis, imensas certezas, montes de certezas, certezas a propósito de tudo e de nada, afirmadas com autoridade, em voz alta para que todos oiçam, com desassombro, com ênfase, com dignidade, acompanhadas de perfurantes censuras no olhar carregado, oblíquo.
Preciso urgentemente de ter razão, de ter imensas razões, montes de razões, de eu próprio me instituir em razão. Ser razão! Dar um soco furibundo e convicto no tampo da mesa e espadanar razões nas ventas da assistência.
Preciso urgentemente de ter convicções profundas, argumentos decisivos, ideias feitas à altura das circunstâncias. Preciso de correr convictamente ao encontro de qualquer coisa, de gritar, de berrar, de ter apoplexias sagradas em defesa dessa coisa. Preciso de considerar imbecis todos os que tiverem opiniões diferentes
da minha, de os mandar, sem rebuço, para o diabo que os carregue, de os prejudicar, sem remorsos, de todas as maneiras possíveis, de lhes tapar a boca, de lhes cortar as frases no meio, de lhes virar as costas ostensivamente. Preciso de ter amigos da mesma cor, caras unhacas, que me dêem palmadinhas nas costas, que me chamem pá e me façam brindes em almoços de camaradagem. Preciso de me acocorar à volta da mesa do café, e resolver os problemas sociais entre ruidosos alívios de expectoração. Preciso de encher o peito e cantar loas, e enrouquecer a dar vivas, de atirar o chapéu ao ar, de saber de cor as frequências dos emissores. O que tudo são símbolos e sinais de certezas. Certezas! Imensas certezas! Montes de certezas! Pirinéus, Urais, Himalaias de certezas!
(Antônio Gedeão) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: ANTÓNIO GEDEÃO - O POETA PROFESSOR Ter Ago 04, 2009 11:25 pm | |
| LÁGRIMA DE PRETA
Encontrei uma preta que estava a chorar, pedi lhe uma lágrima para a analisar.
Recolhi a lágrima com todo o cuidado num tubo de ensaio bem esterilizado.
Olhei a de um lado, do outro e de frente: tinha um ar de gota muito transparente.
Mandei vir os ácidos, as bases e os sais, as drogas usadas em casos que tais.
Ensaiei a frio, experimentei ao lume, de todas as vezes deu me o que é costume:
nem sinais de negro, nem vestígios de ódio. Água (quase tudo) e cloreto de Sódio.
(Antônio Gedeão) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: ANTÓNIO GEDEÃO - O POETA PROFESSOR Ter Ago 04, 2009 11:26 pm | |
| CALÇADA DE CARRICHE
Luísa sobe, sobe a calçada, sobe e não pode que vai cansada. Sobe, Luísa, Luísa, sobe, sobe que sobe, sobe a calçada. Saiu de casa de madrugada; regressa a casa é já noite fechada. Na mão grosseira, de pele queimada, leva a lancheira desengonçada. Anda Luísa, Luísa sobe, sobe que sobe, sobe a calçada.
Luísa é nova, desenxovalhada, tem perna gorda, bem torneada. Ferve lhe o sangue de afogueada; saltam lhe os peitos na caminhada. Anda Luísa, Luísa sobe, sobe que sobe, sobe a calçada.
Passam magalas, rapaziada, palpam lhe as coxas, não dá por nada. Anda Luísa, Luísa sobe, sobe que sobe, sobe a calçada.
Chegou a casa não disse nada. Pegou na filha, deu lhe a mamada; bebeu a sopa numa golada; lavou a loiça, varreu a escada; deu jeito à casa desarranjada; coseu a roupa já remendada; despiu se à pressa, desinteressada; caiu na cama de uma assentada; chegou o homem, viu a deitada; serviu se dela, não deu por nada. Anda Luísa, Luísa sobe, sobe que sobe, sobe a calçada.
Na manhã débil sem alvorada, salta da cama, desembestada; puxa da filha, dá lhe a mamada; veste se à pressa, desengonçada; anda, ciranda, desaustinada; range o soalho a cada passada; salta para a rua, corre açodada, galga o passeio, desce a calçada, chega à oficina à hora marcada, puxa que puxa, larga que larga, puxa que puxa, larga que larga, puxa que puxa, larga que larga, puxa que puxa, larga que larga; toca a sineta na hora aprazada, corre à cantina volta à toada, puxa que puxa, larga que larga, puxa que puxa, larga que larga, puxa que puxa, larga que larga. Regressa a casa é já noite fechada. Luísa arqueija pela calçada. Anda Luísa, Luísa sobe, sobe que sobe, sobe a calçada, sobe que sobe, sobe a calçada, sobe que sobe, sobe a calçada. Anda Luísa, Luísa sobe, sobe que sobe, sobe a calçada.
(Antônio Gedeão) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: ANTÓNIO GEDEÃO - O POETA PROFESSOR Ter Ago 04, 2009 11:27 pm | |
| PEDRA FILOSOFAL
Eles não sabem que o sonho é uma constante da vida tão concreta e definida como outra coisa qualquer, como esta pedra cinzenta em que me sento e descanso, como este ribeiro manso em serenos sobressaltos, como estes pinheiros altos que em verde e oiro se agitam, como estas aves que gritam em bebedeiras de azul.
Eles não sabem que o sonho é vinho, é espuma, é fermento, bichinho álacre e sedento, de focinho pontiagudo, que fossa através de tudo num perpétuo movimento.
Eles não sabem que o sonho é tela, é cor, é pincel, base, fuste, capitel, arco em ogiva, vitral, pináculo de catedral, contraponto, sinfonia, máscara grega, magia, que é retorta de alquimista, mapa do mundo distante, rosa dos ventos, Infante, caravela quinhentista, que é Cabo da Boa Esperança, ouro, canela, marfim, florete de espadachim, bastidor, passo de dança, Colombina e Arlequim, passarola voadora, pára raios, locomotiva, barco de proa festiva, alto forno, geradora, cisão do átomo, radar, ultra som, televisão, desembarque em foguetão na superfície lunar.
Eles não sabem, nem sonham, que o sonho comanda a vida. Que sempre que um homem sonha o mundo pula e avança como bola colorida entre as mãos de uma criança.
(Antônio Gedeão) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: ANTÓNIO GEDEÃO - O POETA PROFESSOR Ter Ago 04, 2009 11:28 pm | |
| Aurora boreal
Tenho quarenta janelas nas paredes do meu quarto. Sem vidros nem bambinelas posso ver através delas o mundo em que me reparto. Por uma entra a luz do Sol, por outra a luz do luar, por outra a luz das estrelas que andam no céu a rolar. Por esta entra a Via Láctea como um vapor de algodão, por aquela a luz dos homens, pela outra a escuridão. Pela maior entra o espanto, pela menor a certeza, pela da frente a beleza que inunda de canto a canto. Pela quadrada entra a esperança de quatro lados iguais, quatro arestas, quatro vértices, quatro pontos cardeais. Pela redonda entra o sonho, que as vigias são redondas, e o sonho afaga e embala à semelhança das ondas. Por além entra a tristeza, por aquela entra a saudade, e o desejo, e a humildade, e o silêncio, e a surpresa, e o amor dos homens, e o tédio, e o medo, e a melancolia, e essa fome sem remédio a que se chama poesia, e a inocência, e a bondade, e a dor própria, e a dor alheia, e a paixão que se incendeia, e a viuvez, e a piedade, e o grande pássaro branco, e o grande pássaro negro que se olham obliquamente, arrepiados de medo, todos os risos e choros, todas as fomes e sedes, tudo alonga a sua sombra nas minhas quatro paredes.
Oh janelas do meu quarto, quem vos pudesse rasgar! Com tanta janela aberta falta-me a luz e o ar.
(Antônio Gedeão) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: ANTÓNIO GEDEÃO - O POETA PROFESSOR Ter Ago 04, 2009 11:29 pm | |
| Dez reis de esperança
Se não fosse esta certeza que nem sei de onde me vem, não comia, nem bebia, nem falava com ninguém. Acocorava-me a um canto, no mais escuro que houvesse, punha os joelhos à boca e viesse o que viesse. Não fossem os olhos grandes do ingénuo adolescente, a chuva das penas brancas a cair impertinente, aquele incógnito rosto, pintado em tons de aguarela, que sonha no frio encosto da vidraça da janela, não fosse a imensa piedade dos homens que não cresceram, que ouviram, viram, ouviram, viram, e não perceberam, essas máscaras selectas, antologia do espanto, flores sem caule, flutuando no pranto do desencanto, se não fosse a fome e a sede dessa humanidade exangue,
roía as unhas e os dedos até os fazer em sangue.
(Antônio Gedeão) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: ANTÓNIO GEDEÃO - O POETA PROFESSOR Ter Ago 04, 2009 11:30 pm | |
| Amor sem tréguas
É necessário amar, qualquer coisa ou alguém; o que interessa é gostar não importa de quem.
Não importa de quem, não importa de quê; o que interessa é amar mesmo o que não se vê.
Pode ser uma mulher, uma pedra, uma flor, uma coisa qualquer, seja lá o que for.
Pode até nem ser nada que em ser se concretize, coisa apenas pensada, que a sonhar se precise.
Amar por claridade, sem dever a cumprir; uma oportunidade para olhar e sorrir.
Amar como um homem forte só ele o sabe e pode-o; amar até à morte, amar até ao ódio.
Que o ódio, infelizmente, quando o clima é de horror, é forma inteligente de se morrer de amor.
(Antônio Gedeão) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: ANTÓNIO GEDEÃO - O POETA PROFESSOR Ter Ago 04, 2009 11:31 pm | |
| Todo o tempo é de poesia
Todo o tempo é de poesia Desde a névoa da manhã à névoa do outro dia. Desde a quentura do ventre à frigidez da agonia Todo o tempo é de poesia Entre bombas que deflagram. Corolas que se desdobram. Corpos que em sangue soçobram. Vidas qu'a amar se consagram. Sob a cúpula sombria das mãos que pedem vingança. Sob o arco da aliança da celeste alegoria. Todo o tempo é de poesia. Desde a arrumação ao caos à confusão da harmonia.
(Antônio Gedeão) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: ANTÓNIO GEDEÃO - O POETA PROFESSOR Ter Ago 04, 2009 11:32 pm | |
| SAUDADES DA TERRA
Uns olhos que me olharam com demora, não sei se por amor se caridade, fizeram me pensar na morte, e na saudade que eu sentiria se morresse agora.
E pensei que da vida não teria nem saudade nem pena de a perder, mas que em meus olhos mortos guardaria certas imagens do que pude ver.
Gostei muito da luz. Gostei de vê la de todas as maneiras, da luz do pirilampo à fria luz da estrela, do fogo dos incêndios à chama das fogueiras. Gostei muito de a ver quando cintila na face de um cristal, quando trespassa, em lâmina tranquila, a poeirenta névoa de um pinhal, quando salta, nas águas, em contorções de cobra, desfeita em pedrarias de lapidado ceptro, quando incide num prisma e se desdobra nas sete cores do espectro.
Também gostei do mar. Gostei de vê lo em fúria quando galga lambendo o dorso dos navios, quando afaga em blandícias de cândida luxúria a pele morna da areia toda eriçada de calafrios.
E também gostei muito do Jardim da Estrela com os velhos sentados nos bancos ao sol e a mãe da pequenita a aconchegá la no carrinho e a adormecê la e as meninas a correrem atrás das pombas e os meninos a jogarem ao futebol.
À porta do Jardim, no inverno, ao entardecer, à hora em que as árvores começam a tomar formas estranhas, gostei muito de ver erguer se a névoa azul do fumo das castanhas.
Também gostei de ver, na rua, os pares de namorados que se julgam sózinhos no meio de toda a gente, e se amam com os dedos aflitos, entrecruzados, de olhos postos nos olhos, angustiadamente.
E gostei de ver as laranjas em montes, nos mercados, e as mulheres a depenarem galinhas e a proferirem palavras grosseiras, e os homens a aguentarem e a travarem os grandes camiões pesados, e os gatos a miarem e a roçarem se nas pernas das peixeiras.
Mas... saudade, saudade propriamente, essa tenaz que aperta o coração e deixa na garganta um travo adstringente, essa, não.
Saudade, se a tivesse, só de Aquela que nas flores se anunciou, se uma saudade alguém pudesse tê la do que não se passou. De Aquela que morreu antes de eu ter nascido, ou estará por nascer – quem sabe? – ou talvez ande nalgum atalho deste mundo grande para lá dos confins do horizonte perdido.
Triste de quem não tem, na hora que se esfuma, saudades de ninguém nem de coisa nenhuma.
(Antônio Gedeão) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: ANTÓNIO GEDEÃO - O POETA PROFESSOR Ter Ago 04, 2009 11:33 pm | |
| FALA DO HOMEM NASCIDO
(chega à boca da cena, e diz:)
Venho da terra assombrada, do ventre da minha mãe; não pretendo roubar nada nem fazer mal a ninguém. Só quero o que me é devido por me trazerem aqui, que eu nem sequer fui ouvido no acto de que nasci.
Trago boca para comer e olhos para desejar. Com licença, quero passar, tenho pressa de viver. Com licença! Com licença! Que a vida é água a correr. Venho do fundo do tempo; não tenho tempo a perder.
Minha barca aparelhada solta o pano rumo ao norte; meu desejo é passaporte para a fronteira fechada. Não há ventos que não prestem nem marés que não convenham, nem forças que me molestem, correntes que me detenham.
Quero eu e a Natureza, que a Natureza sou eu, e as forças da Natureza nunca ninguém as venceu.
Com licença! Com licença! Que a barca se faz ao mar. Não há poder que me vença. Mesmo morto hei de passar. Com licença! Com licença! Com rumo à estrela polar.
(Antônio Gedeão) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: ANTÓNIO GEDEÃO - O POETA PROFESSOR Ter Ago 04, 2009 11:34 pm | |
| AUTOBIOGRAFIA
Enquanto comia num gesto tranquilo, comia e ouvia falar se daquilo.
Dormia e ouvia solicitamente, como se presente presente estaria.
E enquanto comia, comia e ouvia, a frágil menina que no fundo habita, que chora e que grita saía de mim.
Saía de mim correndo e chorando num gesto revolto, cabelinho solto, roupa esvoaçando.
Ia como louca, chorava e corria, enquanto eu metia comida na boca.
Fugia lhe a estrada debaixo dos pés, a estrada pisada que o luzeiro doira, serpentina loira que vai ter ao mar.
Corria a menina de braços erguidos, seus brancos vestidos pareciam luar.
Por dentro ia a noite, por fora ia o dia. A vida estuava, a maré subia.
Caiu a menina na praia amarela, logo um modelo de algas se apoderaram dela.
Se apoderou dela carinhosamente, que as algas são gestos mas não são de gente.
Caiu e ficou se deitada de bruços, desfeita em soluços sem forma nem lei.
Ò minha águazinha faz com que eu não sinta, faz com que eu não minta, faz com que eu não odeie!
Águazinha querida, compromisso antigo, dissolve me a vida, leva me contigo.
Leva me contigo no berço das algas; que o sal com que salgas seja o meu vestido.
Ficou se a menina desfeita em soluços, seu corpo, de bruços, com o mar a cobri lo, enquanto eu, sentado, sentado comia, comia e ouvia, falar se daquilo.
(Antônio Gedeão) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: ANTÓNIO GEDEÃO - O POETA PROFESSOR Sáb Nov 28, 2009 8:23 pm | |
| Poema do alegre desespero
Compreende-se que lá para o ano três mil e tal ninguém se lembre de certo Fernão barbudo que plantava couves em Oliveira do Hospital,
ou da minha virtuosa tia-avó Maria das Dores que tirou um retrato toda vestida de veludo sentada num canapé junto de um vaso com flores.
Compreende-se.
E até mesmo que já ninguém se lembre que houve três impérios no Egipto (o Alto Império, o Médio Império e o Baixo Império) com muitos faraós, todos a caminharem de lado e a fazerem tudo de perfil, e o Estrabão, o Artaxerpes, e o Xenofonte, e o Heraclito, e o desfiladeiro das Termópilas, e a mulher do Péricles, e a retirada dos dez mil, e os reis de barbas encaracoladas que eram senhores de muitas terras, que conquistavam o Lácio e perdiam o Épiro, e conquistavam o Épiro e perdiam o Lácio,
e passavam a vida inteira a fazer guerras, e quando batiam com o pé no chão faziam tremer todo o palácio, e o resto tudo por aí fora, e a Guerra dos Cem Anos, e a Invencível Armada, e as campanhas de Napoleão, e a bomba de hidrogénio, e os poemas de António Gedeão.
Compreende-se.
Mais império menos império, mais faraó menos faraó, será tudo um vastíssimo cemitério, cacos, cinzas e pó.
Compreende-se. Lá para o ano três mil e tal.
E o nosso sofrimento para que serviu afinal?
(António Gedeão) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: ANTÓNIO GEDEÃO - O POETA PROFESSOR Seg Jan 25, 2010 6:29 pm | |
| Poema do Autocarro
Quantos biliões de homens! Quantos gritos de pânico terror! Quantos ventres aflitos! Quantos milhões de litros do movediço amor! Quantos! Quantas revoluções na cósmica viagem! Quantos deuses erguidos! Quantos ídolos de barro! Quantos! até eu estar aqui nesta paragem à espera do autocarro. E aqui estou, realmente. Aqui estou encharcado em sangue de inocente, no sangue dos homens que matei, no sangue dos impérios que fiz e que desfiz, no sangue do que sei e que não sei, no sangue do que quis e que não quis. Sangue. Sangue. Sangue. Sangue. Amanhã, talvez nesta paragem de autocarro, numa hora qualquer, H ou F ou G, uns homens hão-de vir cheios de medo e sede e me hão-de fuzilar aqui contra a parede, e eu nem sequer perguntarei porquê. Mas... Não há mas. Todos temos culpa, e a nossa culpa é mortal. Mas eu só faço o bem, eu só desejo o bem, o bem universal, sem distinguir ninguém. Todos temos culpa, e a nossa culpa é mortal. Eles virão e eu morrerei sem lhes pedir socorro e sem lhes perguntar porque maltratam. Eu sei porque é que morro. Eles é que não sabem porque matam. Eles são pedras roladas no caos, são ecos longínquos num búzio de sons. Os homens nascem maus. Nós é que havemos de fazê-los bons. Procuro um rosto neste pequeno mundo do autocarro, um rosto onde possa descansar os olhos olhando, um rosto como um gesto suspenso que me estivesse esperando. Mas o rosto não existe. Existem caras, caras triunfantes de vícios, soberbamente ignaras com desvergonhas dissimuladas nos interstícios. O rosto não existe. Procura-o. Não existe. Procura-o. Procura-o como a garganta do emparedado procura o ar; como os dedos do afogado buscam a tábua para se agarrar. Não existe. Vês aquele par sentado além ao fundo? Vês? Alheio a tudo quanto vai pelo mundo, simboliza o amor. Podia o céu ruir e a terra abrir-se, uma chuva de lodo e sangue arrasar tudo que eles continuariam a sorrir-se. Não crês no amor? ? Não ouves? ? Não crês no amor? Cala-te, estupor. Tenho vergonha de existir. Vergonha de aqui estar simplesmente pensando, colaborando sem resistir. Disso, e do resto. Vergonha de sorrir para quem detesto, de responder pois é quando não é. Vergonha de me ofenderem, vergonha de me explorarem, vergonha de me enganarem, de me comprarem, de me venderem. Homens que nunca vi anseiam por resolver o meu problema concreto. Oferecem-me automóveis, frigoríficos, aparelhos de televisão. É só estender a mão e aceitar o prospecto. A vida é bela. Eu é que devia ser banido, expulso da sociedade para que a não prejudique. Hã? Ah! Desculpe. Estava distraído. Um de quinze tostões. Campo de Ourique.
(António Gedeão) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: ANTÓNIO GEDEÃO - O POETA PROFESSOR Seg maio 31, 2010 1:47 pm | |
| Quando choro
Eu, quando choro, não choro eu. Chora aquilo que nos homens em todo tempo sofreu. As lágrimas são as minhas mas o choro não é meu.
(António Gedeão) | |
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