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 JOÃO DE DEUS - O POETA DO AMOR

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Anarca

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MensagemAssunto: JOÃO DE DEUS - O POETA DO AMOR   JOÃO DE DEUS - O POETA DO AMOR EmptyTer Abr 13, 2010 1:36 pm

Biografia

João de Deus nasceu em São Bartolomeu de Messines a 8 de Março de 1830, filho de Isabel Gertrudes Martins e de Pedro José dos Ramos, modestos proprietários dali naturais e residentes. O pai, também comerciante, era conhecido entre os seus patrícios por Pedro Malgovernado, não que merecesse o cognome pelo mau governo da sua casa, mas pela facilidade em satisfazer as vontades dos filhos, com os quais gastava mais do que podia.

O seminário e os anos de Coimbra

João de Deus, o quarto de catorze irmãos, não lhe permitindo a situação sócio-económica da família aspirar a uma carreira universitária, estudou latim na sua terra natal e ingressou no Seminário de Coimbra, então o único caminho para prosseguir estudos aberto aos menos abonados. Em 1850, aos dezenove anos, não tendo vocação para a vida eclesiástica, ingressou na Universidade de Coimbra como estudante de direito.

Preferindo as belas artes à ciência do direito, envolvido na vida boémia coimbrã, teve na Universidade um percurso académico conturbado, com diversas interrupções e reprovações por faltas. Apenas se formou dez anos depois de ter ingressado, em 13 de Julho de 1859, e mesmo assim por instâncias e ameaças dos seus condiscípulos, entre os quais se incluía a melhor intelectualidade da época.

Logo no ano de ingresso na Universidade revelou o seus dotes líricos, escrevendo versos que circularam manuscritos no meio académico e com os quais obtinha modestos rendimentos que ajudavam na sua parca subsistência. De 1851 conhece-se o poema Pomba e a elegia Oração, a qual foi a sua primeira obra publicada, tendo saído a público na Revista Académica em 1855, tendo merecido imediata aclamação pública.

Nos anos seguintes, os fracos recursos familiares, a melancolia e passividade do seu carácter e o insucesso académico levaram a que João de Deus vivesse em Coimbra numa quase indigência. Como forma de ajuda, os amigos e condiscípulos coligiram as suas poesias, as quais foram aparecendo na imprensa coimbrã da época. São desta fase os poemas publicados na Estreia Literária, na Ateneu e no Instituto de Coimbra.

Com aquelas publicações a sua reputação de poeta lírico foi crescendo, com a sua obra a merecer, já em 1858, uma crítica fortemente elogiosa no artigo A propósito de um Poeta, publicado no Instituto de Coimbra por Antero de Quental.

Em 1859, terminado o curso, opta por permanecer em Coimbra, praticando pouca advocacia e continuando a escrever, agora produzindo poesia de carácter satírico, entre as quais ressalta A lata (publicada em 1860 e a sua primeira obra em separata) e A Marmelada.

Não tendo interesse pela advocacia, em 1862 aceita o convite para ir para Beja como redactor do periódico O Bejense, então o jornal de maior expansão no Alentejo. Neste período colaborou em diversos periódicos da imprensa regional do sul de Portugal. Permaneceu em Beja até 1864, regressando nesse ano à sua terra natal.

Mantendo colaboração com a imprensa regional alentejana e algarvia e redigindo a Folha do Sul, em São Bartolomeu de Messines e em Silves tentou sem sucesso a advocacia, tendo em 1868 optado por partir para Lisboa, cidade onde passou a residir.

Em Lisboa levou uma vida de grandes privações. Passava o tempo nos cafés, em particular no Martinho da Arcada, em constantes tertúlias, sem nunca procurar encontrar uma forma estável de ganhar a vida. Para sobreviver recorria à realização de traduções, à escrita de sermões e hinos para cerimónias religiosas e a colaborações literárias várias. Neste período diz-se que, entre outras actividades, costurou roupas de senhora.

A passagem pelas Cortes

Numa dessas tertúlias surgiu a ideia, talvez no contexto do tradicional bota abaixo dos políticos (o poema Eleições de João de Deus indicia isso mesmo), de tentar a eleição de João de Deus como deputado às Cortes e por esta via obter uma subvenção que lhe permitisse viver.

A ideia foi levada avante, e João de Deus apresentou-se às eleições gerais de 22 de Março de 1868 (para a 16:ª legislatura da monarquia constitucional) como candidato independente pelo círculo de Silves.

Apesar da sua candidatura ser apoiada por José António Garcia Blanco e Domingos Vieira, a eleição não foi fácil, tendo havido lugar a uma votação de desempate no dia 5 de Abril imediato. Saindo vitorioso, presta juramento nas Cortes a 18 de Maio de 1868, iniciando relutantemente a sua actividade parlamentar.

Sobre o Parlamento, em declarações que foram publicadas pelo Correio da Noite em 1869, terá dito: Que diacho querem vocês que eu faça no Parlamento? Cantar? Recitar versos? Deve ser (…) gaiola que talvez sirva para dormir lá dentro a ouvir a música dos outros pássaros. Dormirei com certeza!. Essas palavras retratam a sua atitude perante a actividade parlamentar: em 1868 ainda participou, embora sem intervir, na maioria das sessões, mas no ano seguinte, faltou a 10 das 13 sessões que se realizaram.

O casamento e a mudança de vida

Estátua a João de Deus no Jardim da Estrela.Em 1868, pouco depois da sua eleição parlamentar, casa com Guilhermina das Mercês Battaglia, uma senhora de boas famílias, ganhando estabilidade na sua vida pessoal.

Deste casamento nasceram Maria Isabel Battaglia Ramos, José do Espírito Santo Battaglia Ramos, que vira a ser visconde de São Bartolomeu de Messines, João de Deus Ramos, que continuaria a obra pedagógica de seu pai, e Clotilde Battaglia Ramos.

Com o casamento e a passagem pelas Cortes, reflectindo uma maior disponibilidade, inicia a publicação sistemática da sua obra poética e dramática. Logo nesse ano publica a colectânea Flores do campo, a que se segue uma pequena recolha de 14 poemas intitulada Ramo de flores (1869), considerada a sua melhor obra poética.

Ambas recolhas resultaram da selecção feita por José António Garcia Blanco entre os poemas publicados na imprensa periódica. São obras com laivos de ultra-romantismo, representativas da sua primeira fase de produção poética de João de Deus.

Estes textos seriam depois reunidos e organizados por Teófilo Braga. A compilação dos seus textos líricos, satíricos e epigramáticos foi editada com o título de Campo de Flores (1893), e os textos de prosa com o título de Prosas (1898). Na colectânea Campo de Flores foi incluído o poema algo lascivo Cryptinas, o que na altura foi motivo de algum escândalo.

Ao longo dos anos seguintes manterá colaboração com a imprensa periódica e continuará a produzir traduções e adaptações de obras de diversos autores, com destaque para as comédias Amemos o nosso próximo, Ser apresentado, Ensaio de Casamento e A viúva inconsolável

O poema Horácio e Lydia (1872), uma tradução da obra homónima de Pierre de Ronsard, demonstra a perícia de João de Deus na versificação e na manutenção do ritmo discursivo.

Demonstrando a mutação espiritual entretanto ocorrida, publica em 1873 os textos em prosa Ana, Mãe de Maria, A Virgem Maria e A Mulher do Levita de Ephraim, traduções livres da obra Femmes de la Bible do arcebispo francês Georges Darboy. Na mesma linha vão as obras Grinalda de Maria (1877), Loas da Virgem (1878) e Provérbios de Salomão.

Também por esta altura, talvez por influência do seu amigo Antero de Quental, adere ao ideário socialista, vindo e publicar na edição de 29 de Agosto de 1880 do jornal católico Cruz do Operário uma carta onde se afirma socialista dizendo que (…) é socialista porque é cristão, é socialista porque ama os seus semelhantes (…).

[editar] A Cartilha Maternal e o método de ensinar a leitura às crianças
Entretanto, em 1876, menos de um ano depois da morte de António Feliciano de Castilho e perante a descrença em que caíra o Método Português de Castilho, João de Deus envolveu-se nas campanhas de alfabetização, escrevendo a Cartilha Maternal, um novo método de ensino da leitura, que o haveria de distinguir como pedagogo.

A Cartilha, num processo muito semelhante aos esforços que 25 anos antes António Feliciano de Castilho empreendera com o seu método, incorpora, para além daquela experiência, os trabalhos de Johann Heinrich Pestalozzi e Friedrich Wilhelm August Fröbel, dando-lhe um carácter menos infantilizante.

A obra foi recebida de forma encomiástica, sendo saudada como utilíssima e genial pelos principais intelectuais da época, entre os quais Alexandre Herculano e Adolfo Coelho.

Este método, relativamente inovador na época, foi dois anos depois, e por proposta do deputado Augusto Lemos Álvares Portugal Ribeiro, aprovado como o método nacional de aprendizagem da escrita da língua portuguesa. Graças a esta decisão, João de Deus teria a nomeação vitalícia de Comissário Geral da Leitura para essa forma de ensinar, com uma pensão anual de 900$000 réis.

Para complementar o seu método, João de Deus publicou uma tradução adaptada da obra Des devoirs des enfants envers leurs parents, de Theodore-Henri Barraus, a que se seguiram múltiplos artigos de natureza pedagógica contento exortações e instruções dirigidas aos mestres que deveriam aplicar o método.

Os anos finais

A expansão do método da Cartilha Maternal foi seguida de um autêntico fenómeno de culto pela figura do poeta, tornando-o numa das figuras mais populares do último quartel do século XIX português. Nesse contexto foi organizada em 1895 uma grande homenagem nacional ao poeta, alegadamente iniciativa dos estudantes de Coimbra. Durante a homenagem o rei D. Carlos impôs-lhe a grã-cruz da Ordem de Santiago da Espada e por todo o país foram realizadas iniciativas comemorativas.

Na sequência da homenagem nacional, o Diário de Notícias, de 8 de Março de 1895, publicou o seguinte texto laudatório: João de Deus é uma das personificações mais belas do nosso carácter peninsular; vivo e indolente, devaneador e apaixonado, crente e sentimental. É uma flor do meio-dia, cheia de seiva e colorido, dos poetas e nunca ninguém sentiu entre nós mais ardente a sua imortalidade do que Bocage. Com que entusiasmo ele exclamava ao ver os seus versos elogiados na boca de Filinto: - Zoilos tremei; posteridade, és minha! Sob este ponto de vista, João de Deus é a antítese completa de Bocage. Este tinha a inspiração orgulhosa, cheia de fogo, rebentando quase num caudal de ironia e de sarcasmo. João de Deus tem a inspiração serena, espontânea, quase inconsciente. João de Deus é como a flor do campo, que rebenta formosa sem cultivo, velada apenas pela graça de Deus, o jardineiro supremo. As suas poesias são verdadeiras flores do campo, mas das mimosas, das encantadoras na sua singeleza, das que, guardadas num álbum, conservam perfeitamente a delicadeza da forma, o colorido transparente da corola, o aveludado do cálice, a disposição encantadora das pétalas.

Apesar da fama, o método da Cartilha Maternal tinha adversários e pouco depois da homenagem nacional, por iniciativa de Joaquim Pedro de Oliveira Martins, o Ministério do Reino decidiu mandar retirar das salas de aula os quadros da Cartilha. Pouco depois desta polémica decisão, João de Deus caiu doente com uma enfermidade cardíaca.

O filho mais ilustre de São Bartolomeu de Messines viria a falecer, aos 66 anos, no dia 11 de Janeiro de 1896, encontrando-se o seu túmulo no Panteão Nacional.

Por decreto de Governo presidido por Ernesto Rodolfo Hintze Ribeiro, datado de 13 de Janeiro de 1896, foi concedida à viúva e filhos do poeta uma pensão vitalícia, isenta de impostos, de 1 000$000 réis anuais.

João de Deus é recordado em Lisboa pelo Museu João de Deus e em São Bartolomeu de Messines por uma casa-museu e por um grupo escultórico. A modestíssima casa onde nasceu ostenta na sua fachada uma lápide alusiva.

Em 1930, aquando da comemoração do centenário do seu nascimento, foi-lhe erigida um estátua no Jardim da Estrela, em Lisboa.

Obra

Na literatura da sua época, João de Deus ocupou uma posição singular e destacada. Surgido nos finais do ultra-romantismo, aproximou-se da tradição folclórica de forma mais conseguida que qualquer outro escritor romântico português. A sua poesia distinguiu-se, sobretudo, pela grande riqueza musical e rítmica.

Grande parte da sua obra poética está presente em Flores do Campo(eBook) (publicada em 1868), Folhas Soltas (1876) e Campos de Flores. Esta última obra, publicada em 1893, além de conter outros poemas, engloba também o conteúdo de "Flores do Campo" e "Folhas Soltas", pelo que funciona como uma colectânea da sua obra poética.

Foi, ainda, autor de fábulas e de obras destinadas ao teatro, estas na maior parte dos casos traduções e adaptações de autores estrangeiros. Grande parte da sua produção em prosa foi reunida na colectânea Prosas.

Mas a sua obra mais importante viria a ser a Cartilha Maternal, um método destinado a ajudar a aprendizagem da leitura a criança, que ainda hoje mantém seguidores.

Para além das obras mencionadas, deixou um Dicionário Prosódico de Portugal e Brasil (1870), e as obras poéticas Ramo de Flores(eBook) (1869) e Despedidas de Verão (1880).

Algumas composições em prosa que se encontravam dispersas e parte importante da sua correspondência foram editadas postumamente por Teófilo Braga (Lisboa, 1898).

O folheto avulso Cryptinas, normalmente atribuído a João de Deus, foi publicado em fac-símile pelas Edições Ecopy em 2008.
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MensagemAssunto: Re: JOÃO DE DEUS - O POETA DO AMOR   JOÃO DE DEUS - O POETA DO AMOR EmptyTer Abr 13, 2010 1:38 pm

A Vida

A vida é o dia de hoje,
A vida é ai que mal soa,
A vida é sombra que foge,
A vida é nuvem que voa;
A vida é sonho tão leve
Que se desfaz como a neve
E como o fumo se esvai:
A vida dura um momento,
Mais leve do que o pensamento,
A vida leva-a o vento,
A vida é folha que cai!

(João de Deus)
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MensagemAssunto: Re: JOÃO DE DEUS - O POETA DO AMOR   JOÃO DE DEUS - O POETA DO AMOR EmptySeg Abr 19, 2010 1:35 pm

A Caridade

Eu podia falar todas as línguas
Dos homens e dos anjos;
Logo que não tivesse caridade,
Já não passava de um metal que tine,
De um sino vão que soa.

Podia ter o dom da profecia,
Saber o mais possível,
Ter fé capaz de transportar montanhas;
Logo que eu não tivesse caridade,
Já não valia nada!

Eu podia gastar toda afortuna
A bem dos miseráveis,
Deixar que me arrojassem vivo às chamas;
Logo que eu não tivesse caridade,
De nada me servia!

A caridade é dócil, é benévola,
Nunca foi invejosa,
Nunca procede temerariamente,
Nunca se ensoberbece!

Não é ambiciosa; não trabalha
Em seu proveito próprio; não se irrita;
Nunca suspeita mal!

Nunca folgou de ver uma injustiça;
Folga com a verdade!

Tolera tudo! Tudo crê e espera!
Em suma tudo sofre!

João de Deus, in 'Campo de Flores'
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MensagemAssunto: Re: JOÃO DE DEUS - O POETA DO AMOR   JOÃO DE DEUS - O POETA DO AMOR EmptyQua Abr 21, 2010 1:22 pm

Avarento

Puxando um avarento de um pataco
Para pagar a tampa de um buraco
Que tinha já nas abas do casaco,
Levanta os olhos, vê o céu opaco,
Revira-os fulo e dá com um macaco
Defronte, numa loja de tabaco...
Que lhe fazia muito mal ao caco!
Diz ele então
Na força da paixão:
- Há casaco melhor que aquela pele?
Trocava o meu casaco por aquele...
E até a mim... por ele.

Tinha razão,
Quanto a mim.
Quem não tem coração,
Quem não tem alma de satisfazer
As niquices da civilização,
Homem não deve ser;
Seja saguim,
Que escusa tanga, escusa langotim:
Vá para os matos,
Já não sofre tratos
A calçar botas, a comprar sapatos;
Viva nas tocas como os nossos ratos,
E coma cocos, que são mais baratos!

João de Deus, in 'Campo de Flores'
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MensagemAssunto: Re: JOÃO DE DEUS - O POETA DO AMOR   JOÃO DE DEUS - O POETA DO AMOR EmptyQui Abr 22, 2010 12:28 pm

O Dinheiro

O dinheiro é tão bonito,
Tão bonito, o maganão!
Tem tanta graça, o maldito,
Tem tanto chiste, o ladrão!
O falar, fala de um modo...
Todo ele, aquele todo...
E elas acham-no tão guapo!
Velhinha ou moça que veja,
Por mais esquiva que seja,
Tlim!
Papo.

E a cegueira da justiça
Como ele a tira num ai!
Sem lhe tocar com a pinça;
E só dizer-lhe: «Aí vai...»
Operação melindrosa,
Que não é lá qualquer coisa;
Catarata, tome conta!
Pois não faz mais do que isto,
Diz-me um juiz que o tem visto:
Tlim!
Pronta.

Nessas espécies de exames
Que a gente faz em rapaz,
São milagres aos enxames
O que aquele demo faz!
Sem saber nem patavina
De gramática latina,
Quer-se um rapaz dali fora?
Vai ele com tais falinhas,
Tais gaifonas, tais coisinhas...
Tlim!
Ora...

Aquela fisionomia
É lábia que o demo tem!
Mas numa secretaria
Aí é que é vê-lo bem!
Quando ele de grande gala,
Entra o ministro na sala,
Aproveita a ocasião:
«Conhece este amigo antigo?»
- Oh, meu tão antigo amigo!
(Tlim!)
Pois não!

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MensagemAssunto: Re: JOÃO DE DEUS - O POETA DO AMOR   JOÃO DE DEUS - O POETA DO AMOR EmptySex Abr 23, 2010 1:01 pm

Primeiro Amor

Ó Mãe... de minha mãe!
Explica-me o segredo
Que eu mesmo a Deus sem medo
Não ia confessar:
Aquele seu olhar
Persegue-me, e receio,
Pressinto no meu seio
Ergue-se-me outro altar!

Eu em o vendo aspiro
Um ar mais puro, e tremo...
Não sei que abismo temo
Ou que inefável bem...
Oh! e como eu suspiro
Em êxtase o seu nome!...
Que enigma me consome,
Ó Mãe de minha mãe!

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MensagemAssunto: Re: JOÃO DE DEUS - O POETA DO AMOR   JOÃO DE DEUS - O POETA DO AMOR EmptySeg Abr 26, 2010 12:31 pm

Mãe e Filho

Primícias do meu amor!
Meu filhinho do meu seio
Tenro fruto que à luz veio
Como à luz da aurora a flor!

Na tua face inocente,
De teu pai a face beijo,
E em teus olhos, filho, vejo
Como Deus é providente;

Via em lâmina dourada
O meu rosto todo o dia,
E a minha alma não havia
De a ver nunca retratada?

Quando o pai me unia à face
E em seus braços me apertava,
Pomba ou anjo nos faltava
Que ambos juntos abraçasse!

Felizmente Deus que o centro
Vê da Terra e vê do abismo,
Que bem sabe no que eu cismo,
Na minha alma um altar viu dentro:

Mas com lâmpada sem brilho,
Sem o deus a que era feito...
Bafeja-me um dia o peito,
E eis feito o meu gosto, filho!

Como em lágrimas se espalma
Dor íntima e se esvaece
De alma o resto quem pudesse
Vazar todo na tua alma!

Mas em ti minha alma habita!
Mas teu riso a vida furta...
Mas que importa! (morte curta!)
Se um teu beijo ressuscita!

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MensagemAssunto: Re: JOÃO DE DEUS - O POETA DO AMOR   JOÃO DE DEUS - O POETA DO AMOR EmptyQua Abr 28, 2010 4:33 pm

Escreve!

Não sei o que supor
Do teu silêncio. Escreve!
Quem é amado deve
Ser grato ao menos, flor!

Se eu fosse tão feliz
Que te falasse um dia,
De viva voz diria
Mais do que a carta diz.

Mas olha, tal qual é,
Não rias desse escrito,
Que pouco ou muito é dito
Tudo de boa-fé.

Há nesse teu olhar
A doce luz da Lua,
Mas luz que se insinua
A ponto de abrasar...

Pareça nele, sim,
Que há só doçura, embora,
Há fogo que devora...
Que me devora a mim!

Que mata, mas que dá
Uma suave morte;
Mata da mesma sorte
Que uma árvore que há;

Que ao pé se lhe ficou
Acaso alguém dormindo
Adormeceu sorrindo...
Porém não acordou!

Esse teu seio então...
Que encantadora curva!
Como de o ver se turva
A vista e a razão!

Como até mesmo o ar
Suspende a gente logo,
Pregando olhos de fogo
Em tão formoso par!

Ó seio encantador,
Delicioso seio!
Que júbilo, que enleio,
Libar-lhe o néctar, flor!

Eu tenho muita vez
Já visto a borboleta
Na casta violeta
Pousar os leves pés;

E num enlevo tal,
Numa avidez tamanha,
Que a gente a não apanha
Com dó de fazer mal!

Pegada à flor então
No pé curvinho e mole,
As asas nem as bole
Toda sofreguidão!

Pousou... adormeceu!
Só vê, só ouve e sente
O cálix rescendente
Daquele mel do céu!

Pois vê com que prazer
E com que ardente sede
Te havia... que não hei-de!...
Também beijar, sorver!

Mas eu só peço dó,
Só peço piedade!
Mata-me a saudade
Com duas Unhas só!

Eu, a não ser em ti,
Achar alívios onde?
Escreve-me! responde
A carta que escrevi!

Cansado de esperar
Às vezes quando saio,
Pensas que me distraio?
Pois volto com pesar!

Concentra-se-me em ti
A alma de tal modo,
Que esse bulício todo
Nem o ouvi, nem vi!

Ninguém te substitui
Porque só tu és bela!
Que estrela a minha estrela,
E que infeliz que eu fui!

Mas devo-te supor
Sempre indulgente e boa:
Escreve-me e perdoa
Meu violento amor!

Respeita uma afeição
Inútil mas sincera!
Tu és mulher, pondera
O que é uma paixão.

Com sangue era eu capaz
De te escrever; portanto,
Tinta não custa tanto,
E não me escreverás?

Uma palavra, sim,
Que me não amas... queres?
Enquanto me escreveres,
Tu pensarás em mim!

Só essa ideia, crê,
Encerra mais doçura
Que as provas de ternura
Que outra qualquer me dê!

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MensagemAssunto: Re: JOÃO DE DEUS - O POETA DO AMOR   JOÃO DE DEUS - O POETA DO AMOR EmptySex Abr 30, 2010 12:20 pm

Não!

Tenho-te muito amor,
E amas-me muito, creio:
Mas ouve-me, receio
Tomar-te desgraçada:
O homem, minha amada,
Não perde nada, goza;
Mas a mulher é rosa...
Sim, a mulher é flor!

Ora e a flor, vê tu
No que ela se resume...
Faltando-lhe o perfume,
Que é a essência dela,
A mais viçosa e bela
Vê-a a gente e... basta.
Sê sempre, sempre, casta!
Terás quanto possuo!

Terás, enquanto a mim
Me alumiar teu rosto,
Uma alma toda gosto,
Enlevo, riso, encanto!
Depois terás meu pranto
Nas praias solitárias...
Ondas tumultuárias
De lágrimas sem fim!

À noite, que o pesar
Me arrebatar de cada,
Irei na campa rasa
Que resguardar teus ossos,
Ah! recordando os nossos
Tão venturosos dias,
Fazer-te as cinzas frias
Ainda palpitar!

Mil beijos, doce bem,
Darei no pó sagrado,
Em que se houver tornado
Teu corpo tão galante!
Com pena, minha amante,
De não ter a morte
Caído a mim em sorte...
Caído em mim também!

Já exalando os ais
Na lúgubre morada
Te vejo a sombra amada
Sair da sepultura...
A tua imagem pura,
Fiel, mas ilusória...
Gravada na memória
Em traços tão leais!

Então, se ainda ali
Teus vaporosos braços
Me podem dar abraços
Como dão hoje em dia,
Peço-te, sombra fria,
No mais íntimo deles
Que a mim também me geles,
E fique ao pé de ti!

Mas ai! meu coração!
Tu porque assim te afliges,
E trémula diriges
A vista ao Céu piedoso?
O quadro é horroroso,
a cena triste e feia,
Basta encerrar a ideia
De uma separação...

Mas ouve, existe Deus;
Ora e se Deus existe,
Tão horroroso e triste
Que podes temer? Nada!
Desfruta descansada
O êxtase, o enleio
Em que eu já saboreio
O júbilo dos céus!

Deixa-me nesse olhar
Ver com a Lua assoma...
Sim, deixa no aroma,
Que a tua boca exala,
Ver como a rosa fala
Quando a aurora a inspira...
Ver como a flor suspira
Por ver o Sol raiar!

A morte para amor
É êxito sublime;
A morte para o crime
É que é amarga e feia:
A morte não receia
O verdadeiro amante!
Por ela a cada instante
Implora ela o Senhor.

É juntos, tu verás,
Que nós expiraremos!
Sim, juntos que os extremos
Olhares cambiando,
Iremos despegando
Do invólucro terreno
O espírito serreno
Como a eterna paz!

Vê, só porque supus
Chegado esse momento,
Já esse olhar mais lento,
As vistas mais serenas...
Bruxuleando apenas
Em lânguido desejo
Simpático lampejo
De uma inefável luz!

Há neste triste vale
De lágrimas a imagem
De dois nessa passagem
Para a eternidade:
A névoa, a ansiedade,
O júbilo que mata,
Dão uma ideia exacta
Do trânsito fatal.

Mas essa imagem, flor,
É tão fiel, tão viva
Que à sua luz activa
Se cresta a flor mimosa:
E nem o homem goza;
Se goza é um momento:
Depois... o desalento!
Depois... o desamor!

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MensagemAssunto: Re: JOÃO DE DEUS - O POETA DO AMOR   JOÃO DE DEUS - O POETA DO AMOR EmptySeg maio 03, 2010 5:55 pm

Sol do Meu Dia

Se eu fosse nuvem tinha imensa mágoa
Não te servindo de asas maternais
Que te pudessem abrigar da água
Que chovesse das mais!

E sendo eu onda, tinha mágoa suma
Não te podendo a ti, mulher, levar
De praia em praia sobre a alva espuma,
Sem nunca te molhar!

E sendo aragem eu, que pela face
Te roçasse de rijo alguma vez
Que o Senhor com mais força respirasse...
Que mágoa imensa... Vês?

E a luz do teu olhar que me não luza
Um rápido momento a mim sequer,
Como a águia no ar, que passa e cruza
A terra sem na ver!

Mas que me importa a mim! Se me esmagasses
Um dia aos pés o coração a mim,
As vozes que lhe ouviras, se escutasses,
Era o teu nome... sim;

O teu nome gemido docemente,
Com toda a fé de um mártir em Jesus.
Se acaso já em Cristo pôs um crente
A fé que eu em ti pus!

A fé, mais o amor! Porque ele expira
Sem que a ninguém lhe estale o coração;
E eu, se essa luz dos olhos me fugira,
Sobrevivia? Não.

Assim como em ti vivo, morreria
Também contigo, se uma vez (que horror!)
Te visse pôr, ó Sol!... Sol do meu dia!
Astro do meu amor!

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MensagemAssunto: Re: JOÃO DE DEUS - O POETA DO AMOR   JOÃO DE DEUS - O POETA DO AMOR EmptyQua maio 05, 2010 12:13 pm

A um Retrato

Amo-te, flor! Se te amo, Deus que o sabe
Que o diga a teus irmãos, que o Céu povoam
E ébrios de glória cânticos entoam
A quem no mar, na Terra e Céus não cabe.

Se te amo, flor! que o diga o mar que expele
Quanto é domínio, e beija humilde a praia...
Se mal que a Lua lá das ondas saia
Nas rochas me não vê gemer com ele!

Amo-te, flor! Se te amo, o Sol que o diga:
Quando lá da montanha aos Céus se eleva,
Se entre os vermes do pó, que o vento leva,
Me banha a mim também na luz amiga.

Se te amo, flor? Sem ti... que noite escura,
Meu céu, meu campo em flor, meu dia e tudo!
Diga-te a noite minha se te iludo,
Se em vida já sem ti sonhei ventura!

O anjo que no berço humilde e escasso
Do Céu me veio alumiar piedoso
E em lágrimas e riso, pranto e gozo,
Desde então me acompanha passo a passo;

És tu! Amo-te e muito! O que flutua
Na fornalha que o sopro eterno acende,
Não beija a mão do anjo que o suspende
Com mais amor que eu beijo a sombra tua!

João de Deus, in 'Campo de Flores'
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MensagemAssunto: Re: JOÃO DE DEUS - O POETA DO AMOR   JOÃO DE DEUS - O POETA DO AMOR EmptyQui maio 06, 2010 6:08 pm

Paixão

Supõe que de uma praia, rocha ou monte,
Com essa vista embaciada e turva
Que dá aos olhos entranhável dor,
Tinhas podido ver transpor a curva
Pouco a pouco do líquido horizonte
A barca saudosa que levasse
Aquele a quem primeiro uniste a face
E o teu primeiro amor!

Depois, que toda mágoa e saudade,
Da mesma rocha ou alcantil deserto,
Olhando avidamente para o mar...
Vias na solitária imensidade
Vagas ficções de um pensamento incerto
Surgir das ondas, desfazer-se em espuma,
Não alvejando nunca vela alguma...
E sempre a suspirar!

Até que à luz de uma intuição sublime
De alma arrancavas o gemido extremo
De saudade, desespero e dor!...
Pois é assim que eu sofro, assim que eu gemo,
Que nuvem negra o coração me oprime,
Nuvem de mágoa, nuvem de ciúme,
Em te não vendo à hora do costume...
Meu anjo e meu amor!

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MensagemAssunto: Re: JOÃO DE DEUS - O POETA DO AMOR   JOÃO DE DEUS - O POETA DO AMOR EmptySex maio 07, 2010 6:38 pm

Amo-te Muito, Muito!

Amo-te muito, muito!
Reluz-me o paraíso
Num teu olhar fortuito,
Num teu fugaz sorriso!

Quando em silêncio finges
Que um beijo foi furtado
E o rosto desmaiado
De cor-de-rosa tinges,

Dir-se-á que a rosa deve
Assim ficar com pejo
Quando a furtar-lhe um beijo
O zéfiro se atreve!

E às vezes que te assalta
Não sei que idem, jovem,
Que o rosto se te esmalta
De lágrimas que chovem;

Que fogo é que em ti lavra
E as forças te aniquila,
Que choras, mas tranquila,
E nem uma palavra?...

Oh! se essa mudez tua
É como a que eu conservo
Lá quando à noite observo
O que no céu flutua;

Ou quando à luz que adoro
Às horas do infinito,
Nas rochas de granito
Os braços cruzo e choro;

Amamo-nos! Não cabe
Em nossa pobre língua
O que a alma sente, à mingua
De voz... que só Deus sabe!

João de Deus, in 'Campo de Flores'
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MensagemAssunto: Re: JOÃO DE DEUS - O POETA DO AMOR   JOÃO DE DEUS - O POETA DO AMOR EmptyQua maio 12, 2010 1:46 pm

Cantigas

Quando vejo a minha amada
Parece que o Sol nasceu;
Cantai, cantai alvorada
Ó avezinhas do céu.

Nessas águas do Mondego
Se pode a gente mirar,
Elas procuram sossego...
E vão caminho do mar.

A rosa que tu me deste
Peguei-lhe, mudou de cor;
Tornou-se de azul-celeste
Como o céu do nosso amor.

Não me fales da janela,
Que te não ouço da rua;
Fala-me de alguma estrela,
Que te vou ouvir da Lua.

Dizes que a letra não deve
Ser nunca miudinha;
Mas grada ou miúda escreve,
Que o coração adivinha.

Não digas que me não amas
A ver se tenho ciúme;
Os laços do amor são chamas,
E não se brinca com lume.

A virgem dos meus amores
Sobressai entre as mais belas:
É como a rosa entre flores,
É como o Sol entre estrelas.

Eu zombo de sol e chuva,
Noite e dia, terra e mar;
Ais de uma pobre viúva,
Se os ouço, dá-me em chorar.

A sombra da nuvem passa
depressa pela seara;
Mas a nuvem da desgraça
Já de mim se não separa.

Eu bem sei qual é a tinta
Que dás às faces mimosas;
E o carmim com que pinta
Deus nosso Senhor as rosas.

Quando eu era pequenino
Que chorava a bom chorar
A mãe beijava o menino,
No beijo se ia o pesar.

Nunca os beijos que te dei
Me venham ao pensamento...
Correi lágrimas, correi
Para o mar do sofrimento.

Faça Deus maior o mundo,
Terra, mar e céu maior,
Não faz nada tão profundo,
Tão vasto como este amor.

Se tua mãe te vigia,
Faz tua mãe muito bem;
Com jóias de tal valia
Não há fiar em ninguém.

Na alma já não me assoma
Aquela antiga visão;
A rosa perdeu o aroma
A luz perdeu o clarão.

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MensagemAssunto: Re: JOÃO DE DEUS - O POETA DO AMOR   JOÃO DE DEUS - O POETA DO AMOR EmptySex maio 14, 2010 4:27 pm

Dúvida

Amas-me a mim? Perdoa,
É impossível! Não,
Não há quem se condoa
Da minha solidão.

Como podia eu, triste,
Ah! inspirar-te amor
Um dia que me viste,
Se é que me viste... flor!

Tu, bela, fresca e linda
Como a aurora, ou mais
Do que a aurora ainda,
Mal ouves os meus ais!

Mal ouves, porque as aves
Só saltam de manhã
Seus cânticos suaves;
E tu és sua irmã!

De noite apenas trina
O triste rouxinol:
Toda a mais ave inclina
O colo ao pôr do Sol.

Porquê? Porque é ditosa!
Porquê? Porque é feliz!
E a que sorri a rosa?
Ao mesmo a que sorris...

À luz dourada e pura
Do astro criador:
À noite, não, que é escura,
Causa-lhe a ela horror.

Ora uma nuvem negra,
Uma pesada cruz,
Uma alma que se alegra
Só quando vê a luz

De que ele, o Sol, inunda
O mar, quando se põe,
Imagem moribunda
De um coração que foi...

Uma alma semelhante
Não pode cativar
Um rosto tão galante,
Um tão galante olhar!

E eu vi caracteres
Que a tua mão traçou;
Mas vós... ah! vós, mulheres,
Quem já vos decifrou!

Mal te sustinha o pulso
A delicada mão;
Sentia-te convulso
Bater o coração;

Via-te arfar o seio...
Corar... mudar de cor...
E embora, ah! não, não creio...
Tu não me tens amor!

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MensagemAssunto: Re: JOÃO DE DEUS - O POETA DO AMOR   JOÃO DE DEUS - O POETA DO AMOR EmptyTer maio 18, 2010 7:15 pm

Amores, Amores

Não sou eu tão tola
Que caia em casar;
Mulher não é rola
Que tenha um só par:
Eu tenho um moreno,
Tenho um de outra cor,
Tenho um mais pequeno,
Tenho outro maior.

Que mal faz um beijo,
Se apenas o dou,
Desfaz-se-me o pejo,
E o gosto ficou?
Um deles por graça
Deu-me um, e, depois,
Gostei da chalaça,
Paguei-lhe com dois.

Abraços, abraços,
Que mal nos farão?
Se Deus me deu braços,
Foi essa a razão:
Um dia que o alto
Me vinha abraçar,
Fiquei-lhe de um salto
Suspensa no ar.

Vivendo e gozando,
Que a morte é fatal,
E a rosa em murchando
Não vale um real:
Eu sou muito amada,
E há muito que sei
Que Deus não fez nada
Sem ser para quê.

Amores, amores,
Deixá-los dizer;
Se Deus me deu flores,
Foi para as colher:
Eu tenho um moreno,
Tenho um de outra cor,
Tenho um mais pequeno,
Tenho outro maior.

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MensagemAssunto: Re: JOÃO DE DEUS - O POETA DO AMOR   JOÃO DE DEUS - O POETA DO AMOR EmptySeg maio 24, 2010 7:14 pm

Perdão!

Seria o beijo
Que te pedi,
Dize, a razão
(outra não vejo)
Por que perdi
Tanta afeição?
Fiz mal, confesso;
Mas esse excesso,
Se o cometi,
Foi por paixão,
Sim, por amor
De quem?... de ti!

Tu pensas, flor,
Que a mulher basta
Que seja casta,
Unicamente?
Não basta tal:
Cumpre ser boa,
Ser indulgente.
Fiz-te algum mal?
Pois bem: perdoa!

É tão suave
Ao coração
Mesmo o perdão
De ofensa grave!
Se o alcançasse,
Se o conseguisse,
Quisera então
Beijar-te a mão,
Beijar-te a face...
Beijar? que disse!
(Que indiscrição...)
Perdão! perdão!

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MensagemAssunto: Re: JOÃO DE DEUS - O POETA DO AMOR   JOÃO DE DEUS - O POETA DO AMOR EmptyTer maio 25, 2010 3:31 pm

Noite de Amores

Mimosa noite de amores,
Mimoso leito de flores,
Mimosos, lânguidos ais!
Vergôntea débil ainda,
Tremia! Lua tão linda,
Lembra-me ainda... Jamais!

Aquela dália mimosa,
Aquele botão de rosa
Dos lábios dela... Senhor!
Murchavam; mas, como a Lua,
Passava a nuvem: «Sou tua»!
Reverdeciam de amor!

E aquela estátua de neve
Como é que o fogo conteve
Que não a vi descoalhar?
Ondas de fogo, uma a uma,
Naquele peito de espuma
Eram as ondas do mar!

Como os seus olhos me olhavam,
Como nos meus se apagavam,
E se acendiam depois!
Como é que ali confundidas
Se não trocaram as vidas
E os corações de nós dois!

Mimosa noite de amores,
Mimoso leito deflores,
Mimosos, lânguidos ais!
Vergôntea débil ainda,
Tremia! Lua tão linda,
Lembra-me ainda... Jamais!

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MensagemAssunto: Re: JOÃO DE DEUS - O POETA DO AMOR   JOÃO DE DEUS - O POETA DO AMOR EmptyQua maio 26, 2010 12:12 pm

Amor

Não vês como eu sigo
Teus passos, não vês?
O cão do mendigo
Não é mais amigo
Do dono talvez!

Ao pé de uma fonte
No fundo de um vale,
No alto de um monte
Do vasto horizonte,
Sem ti estou mal!

Sem ti, olho e canso
De olhar, e que vi?
Os olhos que lanço,
Acharem descanso,
Só acham em ti!

Os ventos que empolam
A face do mar,
E as ondas que rolam
Na praia, consolam
Tamanho pesar?

As formas estranhas
De nuvens que vão
Roçando as montanhas
Em ondas tamanhas
Distraem-me? Não!

A pomba que abraça
No ar o seu par,
E a nuvem que passa,
Não tem essa graça
Que tens a andar!

Parece o pezinho,
De lindo que é,
Ligeiro e levinho
O de um passarinho
Voando de pé!

O rosto, há em torno
Da pálida oval,
Daquele contorno
Tão puro, o adorno
Da auréola imortal!

Não sei que luz vaga,
Mas íntima luz,
Que nunca se apaga,
Me inunda, me alaga,
Se os olhos lhe pus!

Eu amo-te, e sigo
Teus passos, bem vês!
O cão do mendigo
Não é mais amigo
Do dono talvez!

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MensagemAssunto: Re: JOÃO DE DEUS - O POETA DO AMOR   JOÃO DE DEUS - O POETA DO AMOR EmptySeg maio 31, 2010 12:25 am

Desânimo

Que mimos me confortam?
Que doce luz me acena?
Eu tenho muita pena
De ter nascido até!

Quizera antes ao pé
D'uma arvore frondosa
Ter já em cima a lousa
E descançar emfim!

Alli, nem tu de mim
De certo te lembravas,
Nem estas feras bravas
Me iriam assaltar!

Alli, teria um ar
Mais puro e respiravel,
E a paz imperturbavel
De quem, emfim, morreu!

D'alli, veria o céo
Ora sereno e puro,
Ora toldado e escuro...
Ainda assim melhor,

Que este areal de amor
Onde ando ao desamparo,
Onde a ninguem sou caro
E nem, a mim, ninguem!

Alli passára eu bem
A noite derradeira
Á sombra hospitaleira
Que mais ninguem me dá!

Tu mesma, que não ha
Quem eu mais queira e ame,
Quem a minha alma inflamme
De mais ardente amor,

Os ais da minha dôr
A ti o que te importam?
Teus olhos nem supportam
A minha vista ao pé!

Que mimos me confortam?
Que dôce luz me acena?
Eu tenho muita pena
De ter nascido até!

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MensagemAssunto: Re: JOÃO DE DEUS - O POETA DO AMOR   JOÃO DE DEUS - O POETA DO AMOR EmptyQui Jun 03, 2010 4:25 pm

Adeus

A ti, que em astros desenhei nos céos,
A ti, que em nuvens desenhei nos ares,
A ti, que em ondas desenhei nos mares,
A ti, bom anjo! o derradeiro adeus!

Parto! Se um dia (que é possivel flôr!)
Vires ao longe negrejar um vulto,
Sou eu que aos olhos d'esta gente occulto
O nosso immenso desgraçado amor.

Talvez as féras ao ouvir meus ais,
As brutas selvas, as montanhas brutas,
Concavas rochas, solitarias grutas,
Mais se condoam, se commovam mais!

E lá d'aquellas solidões se aqui
Chegar gemido que uma pedra estala,
Que um cedro vibra, que um carvalho abala,
Sou eu que o solto por amor de ti...

De ti! que em folha que varrer o ar,
Em rama, em sombra que bandeie a aragem,
De fito sempre n'essa cara imagem
Verei, sorrindo, sentirei passar!

De ti, que em astros desenhei nos céos!
De ti, que em nuvens desenhei nos ares!
De ti, que em ondas desenhei nos mares,
E a quem envio o derradeiro adeus!

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MensagemAssunto: Re: JOÃO DE DEUS - O POETA DO AMOR   JOÃO DE DEUS - O POETA DO AMOR EmptySáb Jun 05, 2010 9:17 pm

Sempre!

Pensas que te não vejo a ti? Bom era!
Gravei tão vivamente n'alma a dôce
E bella imagem tua, que eu quizera
Deixar de contemplar-te, só que fosse
Um momento, e não posso, não consigo!

Foges-me, escondes-te e que importa? Esculpes
Mais fundo ainda os indeleveis traços!
Realça-te o retrato! E não me culpes!
Culpa-te antes a ti!... Sigo-te os passos!...
Vejo-te sempre!... trago-te comigo!...

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