| | CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - O POETA FARMACEUTICO | |
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Autor | Mensagem |
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Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - O POETA FARMACEUTICO Dom Nov 15, 2009 2:40 pm | |
| Poema da Necessidade
É preciso casar João, é preciso suportar António, é preciso odiar Melquíades, é preciso substituir nós todos.
É preciso salvar o país, é preciso crer em Deus, é preciso pagar as dívidas, é preciso comprar um rádio, é preciso esquecer fulana.
É preciso estudar volapuque, é preciso estar sempre bêbedo, é preciso ler Baudelaire, é preciso colher as flores de que rezam velhos autores.
É preciso viver com os homens, é preciso não assassiná-los, é preciso ter mãos pálidas e anunciar o FIM DO MUNDO.
Carlos Drummond de Andrade, in 'Sentimento do Mundo' | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - O POETA FARMACEUTICO Ter Nov 17, 2009 12:11 am | |
| Necrológio dos Desiludidos do Amor
Os desiludidos do amor estão desfechando tiros no peito. Do meu quarto ouço a fuzilaria. As amadas torcem-se de gozo. Oh quanta matéria para os jornais.
Desiludidos mas fotografados, escreveram cartas explicativas, tomaram todas as providências para o remorso das amadas.
Pum pum pum adeus, enjoada. Eu vou, tu ficas, mas nos veremos seja no claro céu ou turvo inferno.
Os médicos estão fazendo a autópsia dos desiludidos que se mataram. Que grandes corações eles possuíam. Vísceras imensas, tripas sentimentais e um estômago cheio de poesia...
Agora vamos para o cemitério levar os corpos dos desiludidos encaixotados competentemente (paixões de primeira e de segunda classe).
Os desiludidos seguem iludidos, sem coração, sem tripas, sem amor. Única fortuna, os seus dentes de ouro não servirão de lastro financeiro e cobertos de terra perderão o brilho enquanto as amadas dançarão um samba bravo, violento, sobre a tumba deles.
Carlos Drummond de Andrade, in 'Brejo das Almas' | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - O POETA FARMACEUTICO Qua Nov 18, 2009 12:09 am | |
| O Amor Bate na Porta
Cantiga do amor sem eira nem beira, vira o mundo de cabeça para baixo, suspende a saia das mulheres, tira os óculos dos homens, o amor, seja como for, é o amor.
Meu bem, não chores, hoje tem filme de Carlito!
O amor bate na porta o amor bate na aorta, fui abrir e me constipei. Cardíaco e melancólico, o amor ronca na horta entre pés de laranjeira entre uvas meio verdes e desejos já maduros.
Entre uvas meio verdes, meu amor, não te atormentes. Certos ácidos adoçam a boca murcha dos velhos e quando os dentes não mordem e quando os braços não prendem o amor faz uma cócega o amor desenha uma curva propõe uma geometria.
Amor é bicho instruído. Olha: o amor pulou o muro o amor subiu na árvore em tempo de se estrepar. Pronto, o amor se estrepou. Daqui estou vendo o sangue que escorre do corpo andrógino. Essa ferida, meu bem, às vezes não sara nunca às vezes sara amanhã.
Daqui estou vendo o amor irritado, desapontado, mas também vejo outras coisas: vejo corpos, vejo almas vejo beijos que se beijam ouço mãos que se conversam e que viajam sem mapa. Vejo muitas outras coisas que não ouso compreender...
Carlos Drummond de Andrade, in 'Brejo das Almas' | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - O POETA FARMACEUTICO Sex Nov 20, 2009 12:37 am | |
| Balada do Amor através das Idades
Eu te gosto, você me gosta desde tempos imemoriais. Eu era grego, você troiana, troiana mas não Helena. Saí do cavalo de pau para matar seu irmão. Matei, brigámos, morremos.
Virei soldado romano, perseguidor de cristãos. Na porta da catacumba encontrei-te novamente. Mas quando vi você nua caída na areia do circo e o leão que vinha vindo, dei um pulo desesperado e o leão comeu nós dois.
Depois fui pirata mouro, flagelo da Tripolitânia. Toquei fogo na fragata onde você se escondia da fúria de meu bergantim. Mas quando ia te pegar e te fazer minha escrava, você fez o sinal-da-cruz e rasgou o peito a punhal... Me suicidei também.
Depois (tempos mais amenos) fui cortesão de Versailles, espirituoso e devasso. Você cismou de ser freira... Pulei muro de convento mas complicações políticas nos levaram à guilhotina.
Hoje sou moço moderno, remo, pulo, danço, boxo, tenho dinheiro no banco. Você é uma loura notável, boxa, dança, pula, rema. Seu pai é que não faz gosto. Mas depois de mil peripécias, eu, herói da Paramount, te abraço, beijo e casamos.
Carlos Drummond de Andrade, in 'Alguma Poesia' | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - O POETA FARMACEUTICO Sáb Nov 21, 2009 1:47 pm | |
| Família
Três meninos e duas meninas, sendo uma ainda de colo. A cozinheira preta, a copeira mulata, o papagaio, o gato, o cachorro, as galinhas gordas no palmo de horta e a mulher que trata de tudo.
A espreguiçadeira, a cama, a gangorra, o cigarro, o trabalho, a reza, a goiabada na sobremesa de domingo, o palito nos dentes contentes, o gramofone rouco toda a noite e a mulher que trata de tudo.
O agiota, o leiteiro, o turco, o médico uma vez por mês, o bilhete todas as semanas branco! mas a esperança sempre verde. A mulher que trata de tudo e a felicidade.
Carlos Drummond de Andrade, in 'Alguma Poesia' | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - O POETA FARMACEUTICO Dom Nov 22, 2009 9:56 pm | |
| Toada do Amor
E o amor sempre nessa toada: briga perdoa perdoa briga.
Não se deve xingar a vida, a gente vive, depois esquece. Só o amor volta para brigar, para perdoar, amor cachorro bandido trem.
Mas, se não fosse ele, também que graça que a vida tinha?
Mariquita, dá cá o pito, no teu pito está o infinito.
Carlos Drummond de Andrade, in 'Alguma Poesia' | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - O POETA FARMACEUTICO Seg Nov 23, 2009 11:34 pm | |
| Igual-Desigual
Eu desconfiava: todas as histórias em quadrinho são iguais. Todos os filmes norte-americanos são iguais. Todos os filmes de todos os países são iguais. Todos os best-sellers são iguais Todos os campeonatos nacionais e internacionais de futebol são iguais. Todos os partidos políticos são iguais. Todas as mulheres que andam na moda são iguais. Todos os sonetos, gazéis, virelais, sextinas e rondós são iguais e todos, todos os poemas em verso livre são enfadonhamente iguais.
Todas as guerras do mundo são iguais. Todas as fomes são iguais. Todos os amores, iguais iguais iguais. Iguais todos os rompimentos. A morte é igualíssima. Todas as criações da natureza são iguais. Todas as acções, cruéis, piedosas ou indiferentes, são iguais. Contudo, o homem não é igual a nenhum outro homem, bicho ou coisa.
Ninguém é igual a ninguém. Todo o ser humano é um estranho ímpar.
Carlos Drummond de Andrade, in 'A Paixão Medida' | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - O POETA FARMACEUTICO Qui Nov 26, 2009 11:17 pm | |
| Citações de Carlos Drummond de Andrade:
Os homens são como as moedas; devemos tomá-los pelo seu valor, seja qual for o seu cunho Tema: Homem Necessitamos sempre de ambicionar alguma coisa que, alcançada, não nos torna sem ambição Tema: Ambição O cofre do banco contém apenas dinheiro. Frustar-se-á quem pensar que nele encontrará riqueza Tema: Dinheiro A educação visa melhorar a natureza do homem o que nem sempre é aceite pelo interessado Tema: Educação As obras-primas devem ter sido geradas por acaso; a produção voluntária não vai além da mediocridade Tema: Acaso Há livros escritos para evitar espaços vazios na estante Tema: Literatura Como as plantas a amizade não deve ser muito nem pouco regada Tema: Amizade Há vários motivos para não amar uma pessoa, e um só para amá-la; este prevalece Tema: Amor Perder tempo em aprender coisas que não interessam, priva-nos de descobrir coisas interessantes Tema: Tempo A educação para o sofrimento, evitaria senti-lo, em relação a casos que não o merecem Tema: Sofrimento | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - O POETA FARMACEUTICO Dom Nov 29, 2009 3:47 pm | |
| A Palavra
Já não quero dicionários consultados em vão. Quero só a palavra que nunca estará neles nem se pode inventar.
Que resumiria o mundo e o substituiria. Mais sol do que o sol, dentro da qual vivêssemos todos em comunhão, mudos, saboreando-a.
Carlos Drummond de Andrade, in 'A Paixão Medida' | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - O POETA FARMACEUTICO Ter Dez 01, 2009 11:26 pm | |
| Citações de Carlos Drummond de Andrade:
A amizade é um meio de nos isolarmos da humanidade cultivando algumas pessoas Tema: Amizade A confiança é um acto de fé, e esta dispensa raciocínio Tema: Confiança A leitura é uma fonte inesgotável de prazer mas por incrível que pareça, a quase totalidade, não sente esta sede Tema: Literatura As dificuldades são o aço estrutural que entra na construção do carácter Tema: Carácter Há duas épocas na vida, infância e velhice, em que a felicidade está numa caixa de bombons Tema: Felicidade Ser feliz sem motivo é a mais autêntica forma de felicidade Tema: Felicidade Só é lutador quem sabe lutar consigo mesmo Tema: Homem Ninguém é igual a ninguém. Todo o ser humano é um estranho ímpar Tema: Igualdade Há muitas razões para duvidar e uma só para crer Fonte: "O Avesso das Coisas" Tema: Crença Para a virtude da discrição, ou de modo geral qualquer virtude, aparecer em seu fulgor, é necessário que faltemos à sua prática Fonte: "Fala, Amendoeira" Tema: Discrição | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - O POETA FARMACEUTICO Qui Dez 03, 2009 12:16 am | |
| Igual-Desigual
Eu desconfiava: todas as histórias em quadrinho são iguais. Todos os filmes norte-americanos são iguais. Todos os filmes de todos os países são iguais. Todos os best-sellers são iguais Todos os campeonatos nacionais e internacionais de futebol são iguais. Todos os partidos políticos são iguais. Todas as mulheres que andam na moda são iguais. Todos os sonetos, gazéis, virelais, sextinas e rondós são iguais e todos, todos os poemas em verso livre são enfadonhamente iguais.
Todas as guerras do mundo são iguais. Todas as fomes são iguais. Todos os amores, iguais iguais iguais. Iguais todos os rompimentos. A morte é igualíssima. Todas as criações da natureza são iguais. Todas as acções, cruéis, piedosas ou indiferentes, são iguais. Contudo, o homem não é igual a nenhum outro homem, bicho ou coisa.
Ninguém é igual a ninguém. Todo o ser humano é um estranho ímpar.
Carlos Drummond de Andrade, in 'A Paixão Medida' | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - O POETA FARMACEUTICO Qui Dez 03, 2009 10:39 pm | |
| Deus Triste
Deus é triste.
Domingo descobri que Deus é triste pela semana afora e além do tempo.
A solidão de Deus é incomparável. Deus não está diante de Deus. Está sempre em si mesmo e cobre tudo tristinfinitamente.
A tristeza de Deus é como Deus: eterna.
Deus criou triste. Outra fonte não tem a tristeza do homem.
Carlos Drummond de Andrade, in 'As Impurezas do Branco' | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - O POETA FARMACEUTICO Sáb Dez 05, 2009 2:34 pm | |
| Ainda que Mal
Ainda que mal pergunte, ainda que mal respondas; ainda que mal te entenda, ainda que mal repitas; ainda que mal insista, ainda que mal desculpes; ainda que mal me exprima, ainda que mal me julgues; ainda que mal me mostre, ainda que mal me vejas; ainda que mal te encare, ainda que mal te furtes; ainda que mal te siga, ainda que mal te voltes; ainda que mal te ame, ainda que mal o saibas; ainda que mal te agarre, ainda que mal te mates; ainda assim te pergunto e me queimando em teu seio, me salvo e me dano: amor.
Carlos Drummond de Andrade, in 'As Impurezas do Branco' | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - O POETA FARMACEUTICO Dom Dez 06, 2009 9:55 pm | |
| Citações de Carlos Drummond de Andrade:
É menor pecado elogiar um mau livro sem o ler, do que depois de o ter lido. Por isso, agradeço imediatamente depois de receber o volume. Não há vida literária plenamente virtuosa Fonte: "Passeios na Ilha" Tema: Elogio Escritor: não somente uma certa maneira especial de ver as coisas, senão também uma impossibilidade de as ver de qualquer outra maneira Fonte: "Passeios na Ilha" Tema: Escrita Cem máximas que resumissem a sabedoria universal tornariam dispensáveis os livros Fonte: "O Avesso das Coisas" Tema: Máximas Não é fácil ter paciência diante dos que têm excesso de paciência Fonte: "O Avesso das Coisas" Tema: Paciência Partido político é um agrupamento de cidadãos para defesa abstracta de princípios e elevação concreta de alguns cidadãos Fonte: "O Avesso das Coisas" Tema: Partido (político) Há certo gosto em pensar sozinho. É acto individual, como nascer e morrer Fonte: "Passeios na Ilha" Tema: Pensar O progresso dá-nos tanta coisa que não nos sobra nada nem para pedir, nem para desejar, nem para jogar fora Fonte: "Passeios na Ilha" Tema: Progresso A minha vontade é forte, mas a minha disposição em lhe obedecer é fraca Tema: Vontade Não há como os bons sentimentos para estragarem um cidadão Fonte: "Passeios na Ilha" Tema: Sentimento | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - O POETA FARMACEUTICO Seg Dez 07, 2009 9:17 pm | |
| Quero
Quero que todos os dias do ano todos os dias da vida de meia em meia hora de 5 em 5 minutos me digas: Eu te amo.
Ouvindo-te dizer: Eu te amo, creio, no momento, que sou amado, No momento anterior e no seguinte, como sabê-lo?
Quero que me repitas até à exaustão que me amas que me amas que me amas. Do contrário evapora-se a amação pois ao dizer: Eu te amo, desmentes apagas teu amor por mim.
Exijo de ti o perene comunicado. Não exijo senão isto, isto sempre, isto cada vez mais.
Quero ser amado por e em tua palavra nem sei de outra maneira a não ser esta de reconhecer o dom amoroso.
Carlos Drummond de Andrade, in 'As Impurezas do Branco' | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - O POETA FARMACEUTICO Qua Dez 09, 2009 4:04 pm | |
| Duração
O tempo era bom? Não era O tempo é, para sempre. A hera da antiga era roreja incansavelmente.
Aconteceu há mil anos? Continua acontecendo. Nos mais desbotados panos, estou me lendo e relendo.
Tudo morto, na distância que vai de alguém a si mesmo? Vive tudo, mas sem ânsia de estar amando e estar preso.
Pois tudo enfim se liberta de ferros forjados no ar. A alma sorri, já bem perto, da raiz mesma do ser.
Carlos Drummond de Andrade, in 'As Impurezas do Branco' | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - O POETA FARMACEUTICO Qui Dez 10, 2009 4:50 pm | |
| Confissão
É certo que me repito, é certo que me refuto e que, decidido, hesito no entra-e-sai de um minuto.
É certo que irresoluto entre o velho e o novo rito atiro à cesta o absoluto como inútil papelito.
É tão certo que me aperto numa tenaz de mosquito como é trinta vezes certo que me oculto no meu grito.
Certo, certo, certo, certo que mais sinto que reflicto as fábulas do deserto do raciocínio infinito.
É tudo certo e prescrito em nebuloso estatuto. O homem, chamar-lhe mito não passa de anacoluto.
Carlos Drummond de Andrade, in 'As Impurezas do Branco' | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - O POETA FARMACEUTICO Sáb Dez 12, 2009 1:03 am | |
| Tu? Eu?
Não morres satisfeito. A vida te viveu sem que vivesses nela. E não te convenceu nem deu qualquer motivo para haver o ser vivo.
A vida te venceu em luta desigual. Era todo o passado presente presidente na polpa do futuro acuando-te no beco. Se morres derrotado, não morres conformado.
Nem morres informado dos termos da sentença de tua morte, lida antes de redigida. Deram-te um defensor cego surdo estrangeiro que ora metia medo ora extorquia amor.
Nem sabes se és culpado de não ter culpa. Sabes que morres todo o tempo no ensaiar errado que vai a cada instante desensinando a morte quanto mais a soletras, sem que, nascido, more onde, vivendo, morres.
Não morres satisfeito de trocar tua morte por outra mais (?) perfeita. Não aceitas teu como aceitaste os muitos fins em volta de ti.
Testemunhaste a morte no privilégio de ouro de a sentires em vida através de um aquário. Eras tu que morrias nesse, naquela; e vias teu ser evaporado fugir à percepção. Estranho vivo, ausente na suposta consciência de imperador cativo.
Foste morrendo só como sobremorrente no lodoso telhado (era prémio, castigo?) de onde a vista captava o que era abraço e não durava ou se perdia em guerra de extermínio, horror de lado a lado.
E tudo foi a caça veloz fugindo ao tiro e o tiro se perdendo em outra caça ou planta ou barro, arame, gruta. E a procura do tiro e do atirador (nem sequer tinha mãos), procura, a procura da razão de procura.
Não morres satisfeito, morres desinformado.
Carlos Drummond de Andrade, in 'A Falta que Ama' | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - O POETA FARMACEUTICO Dom Dez 13, 2009 3:33 pm | |
| Falta Pouco
Falta pouco para acabar o uso desta mesa pela manhã o hábito de chegar à janela da esquerda aberta sobre enxugadores de roupa. Falta pouco para acabar a própria obrigação de roupa a obrigação de fazer barba a consulta a dicionários a conversa com amigos pelo telefone.
Falta pouco para acabar o recebimento de cartas as sempre adiadas respostas o pagamento de impostos ao país, à cidade as novidades sangrentas do mundo a música dos intervalos.
Falta pouco para o mundo acabar sem explosão sem outro ruído além do que escapa da garganta com falta de ar.
Agora que ele estava principiando a confessar na bruma seu semblante e melodia.
Carlos Drummond de Andrade, in 'A Falta que Ama' | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - O POETA FARMACEUTICO Seg Dez 14, 2009 9:59 pm | |
| O Deus Mal Informado
No caminho onde pisou um deus há tanto tenpo que o tempo não lembra resta o sonho dos pés sem peso sem desenho.
Quem passe ali, na fracção de segundo, em deus se erige, insciente, deus faminto, saudoso de existência.
Vai seguindo em demanda de seu rastro, é um tremor radioso, uma opulência de impossíveis, casulos do possível.
Mas a estrada se parte, se milparte, a seta não aponta a destino algum, e o traço ausente ao homem torna homem, novamente.
Carlos Drummond de Andrade, in 'A Falta que Ama' | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - O POETA FARMACEUTICO Dom Fev 28, 2010 7:47 pm | |
| Poema erótico ...
Satânico é meu pensamento a teu respeito, e ardente é o meu desejo de apertar-te em minha mão, numa sede de vingança incontestável pelo que me fizeste ontem. A noite era quente e calma, e eu estava em minha cama, quando, sorrateiramente, te aproximaste... Encostaste o teu corpo sem roupa no meu corpo nu, sem o mínimo pudor! Percebendo minha aparente indiferença, aconchegaste-te a mim e mordeste-me sem escrúpulos. Até nos mais íntimos lugares. Eu adormeci. Hoje quando acordei, procurei-te numa ânsia ardente, mas em vão. Deixaste em meu corpo e no lençol provas irrefutáveis do que entre nós ocorreu durante a noite. Esta noite recolho-me mais cedo, para na mesma cama, te esperar. Quando chegares, quero te agarrar com avidez e força. Quero te apertar com todas as forças de minhas mãos. Só descansarei quando vir sair o sangue quente do seu corpo. Só assim, livrar-me-ei de ti, pernilongo Filho da Puta!!!!
Carlos Drummond de Andrade | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - O POETA FARMACEUTICO Qua Ago 04, 2010 7:11 pm | |
| Memória...
Amar o perdido deixa confundido este coração.
Nada pode o olvido contra o sem sentido apelo do Não.
As coisas tangíveis tornam-se insensíveis à palma da mão
Mas as coisas findas muito mais que lindas, essas ficarão.
Carlos Drummond de Andrade | |
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| Assunto: Re: CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - O POETA FARMACEUTICO | |
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