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| DAVID MOURÃO-FERREIRA - O POETA DO EROTISMO | |
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Autor | Mensagem |
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Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: DAVID MOURÃO-FERREIRA - O POETA DO EROTISMO Qui Dez 02, 2010 10:28 pm | |
| Labirinto ou não Foi Nada
Talvez houvesse uma flor aberta na tua mão. Podia ter sido amor, e foi apenas traição.
É tão negro o labirinto que vai dar à tua rua ... Ai de mim, que nem pressinto a cor dos ombros da Lua!
Talvez houvesse a passagem de uma estrela no teu rosto. Era quase uma viagem: foi apenas um desgosto.
É tão negro o labirinto que vai dar à tua rua... Só o fantasma do instinto na cinza do céu flutua.
Tens agora a mão fechada; no rosto, nenhum fulgor. Não foi nada, não foi nada: podia ter sido amor.
David Mourão-Ferreira, in "À Guitarra e à Viola" | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: DAVID MOURÃO-FERREIRA - O POETA DO EROTISMO Sex Dez 03, 2010 10:59 pm | |
| Noite Apressada
Era uma noite apressada depois de um dia tão lento. Era uma rosa encarnada aberta nesse momento. Era uma boca fechada sob a mordaça de um lenço. Era afinal quase nada, e tudo parecia imenso!
Imensa, a casa perdida no meio do vendaval; imensa, a linha da vida no seu desenho mortal; imensa, na despedida, a certeza do final.
Era uma haste inclinada sob o capricho do vento. Era a minh'alma, dobrada, dentro do teu pensamento. Era uma igreja assaltada, mas que cheirava a incenso. Era afinal quase nada, e tudo parecia imenso!
Imensa, a luz proibida no centro da catedral; imensa, a voz diluída além do bem e do mal; imensa, por toda a vida, uma descrença total!
David Mourão-Ferreira, in "À Guitarra e à Viola" | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: DAVID MOURÃO-FERREIRA - O POETA DO EROTISMO Sáb Dez 04, 2010 2:22 pm | |
| Elegia do Ciúme
A tua morte, que me importa, se o meu desejo não morreu? Sonho contigo, virgem morta, e assim consigo (mas que importa?) possuir em sonho quem morreu.
Sonho contigo em sobressalto, não vás fugir-me, como outrora. E em cada encontro a que não falto inda me turbo e sobressalto à tua mínima demora.
Onde estiveste? Onde? Com quem? - Acordo, lívido, em furor. Súbito, sei: com mais ninguém, ó meu amor!, com mais ninguém repartirás o teu amor.
E se adormeço novamente vou, tão feliz!, sem azedume - agradecer-te, suavemente, a tua morte que consente tranquilidade ao meu ciúme.
David Mourão-Ferreira, in "Tempestade de Verão" | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: DAVID MOURÃO-FERREIRA - O POETA DO EROTISMO Seg Dez 06, 2010 10:34 pm | |
| A Guerra
E tropeçavam todos nalgum vulto, quantos iam, febris, para morrer: era o passado, o seu passado - um vulto de esfinge ou de mulher.
Caíam como heróis os que não o eram, pesados de infortúnio e solidão. (Arma secreta em cada coração: a tortura de tudo o que perderam.)
Inimigos não tinham a não ser aquela nostalgia que era deles. Mas lutavam!, sonâmbulos, imbeles, só na esp'rança de ver, de ver e ter de novo aquele vulto - imponderável e oculto - de esfinge, ou de mulher.
David Mourão-Ferreira, in "Tempestade de Verão" | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: DAVID MOURÃO-FERREIRA - O POETA DO EROTISMO Qua Dez 08, 2010 7:46 pm | |
| Silêncio
Já o silêncio não é de oiro: é de cristal; redoma de cristal este silêncio imposto. Que lívido museu! Velado, sepulcral. Ai de quem se atrever a mostrar bem o rosto!
Um hálito de medo embaciando o vidrado dá-nos um estranho ar de fantasmas ou fetos. Na silente armadura, e sobre si fechado, ninguém sonha sequer sonhar sonhos completos.
Tão mal consegue o luar insinuar-se em nós que a própria voz do mar segue o risco de um disco... Não cessa de tocar; não cessa a sua voz. Mas já ninguém pretende exp'rimentar-lhe o risco!
David Mourão-Ferreira, in "Tempestade de Verão" | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: DAVID MOURÃO-FERREIRA - O POETA DO EROTISMO Sex Dez 10, 2010 1:25 am | |
| Canção Amarga
Que importa o gesto não ser bem o gesto grácil que terias? - Importa amar, sem ver a quem... Ser mau ou bom, conforme os dias.
Agora, tu, só entrevista, quantas imagens me trouxeste! Mas é preciso que eu resista e não acorde um sonho agreste.
Que passes tu! Por mim, bem sei que hei-de aceitar o que vier, pois tarde ou cedo deverei de sonho e pasmo apodrecer.
Que importa o gesto não ser bem o gesto grácil que terias? - Importa amar, sem ver a quem... Ser infeliz, todos os dias!
David Mourão-Ferreira, in "A Secreta Viagem" | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: DAVID MOURÃO-FERREIRA - O POETA DO EROTISMO Sex Dez 10, 2010 3:37 pm | |
| Paisagem
Desejei-te pinheiro à beira-mar para fixar o teu perfil exacto.
Desejei-te encerrada num retrato para poder-te contemplar.
Desejei que tu fosses sombra e folhas no limite sereno dessa praia.
E desejei: «Que nada me distraia dos horizontes que tu olhas!»
Mas frágil e humano grão de areia não me detive à tua sombra esguia.
(Insatisfeito, um corpo rodopia na solidão que te rodeia.)
David Mourão-Ferreira, in "A Secreta Viagem" | |
| | | Conteúdo patrocinado
| Assunto: Re: DAVID MOURÃO-FERREIRA - O POETA DO EROTISMO | |
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| | | | DAVID MOURÃO-FERREIRA - O POETA DO EROTISMO | |
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