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| DAVID MOURÃO-FERREIRA - O POETA DO EROTISMO | |
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Autor | Mensagem |
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Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: DAVID MOURÃO-FERREIRA - O POETA DO EROTISMO Seg Out 18, 2010 6:09 pm | |
| Escritor e professor universitário português, natural de Lisboa. Licenciou-se em Filologia Românica em 1951. Foi professor do ensino técnico e do ensino liceal e, em 1957, iniciou a sua carreira de professor universitário na Faculdade de Letras de Lisboa.
Afastado desta actividade entre 1963 e 1970, por motivos políticos, foi professor catedrático convidado da mesma instituição a partir de 1990. Entretanto, mantivera nos anos 60 programas culturais de rádio e televisão. Em 1963 foi eleito secretário-geral da Sociedade Portuguesa de Autores e, já nos anos 80, presidente da Associação Portuguesa de Escritores.
Logo após o 25 de Abril de 1974, foi director do jornal A Capital. Secretário de Estado da Cultura em vários governos entre 1976 e 1978, foi também director-adjunto do jornal O Dia entre 1975 e 1976. Responsável pelo Serviço de Bibliotecas Itinerantes e Fixas da Fundação Calouste Gulbenkian a partir de 1981, dirigiu, desde 1984, a revista Colóquio/Letras, da mesma instituição.
A sua carreira literária teve início em 1945, com a publicação de alguns poemas na revista Seara Nova. Três anos mais tarde, ingressou no Teatro-Estúdio do Salitre e no Teatro da Rua da Fé. Publicou as peças Isolda (1948), Contrabando (1950) e O Irmão (1965). Em 1950, foi um dos co-fundadores da revista literária Távola Redonda, que se assumiu como veículo de uma alternativa à literatura empenhada, de realismo social, que então dominava o panorama cultural português, defendendo uma arte autónoma. Em 1950, publicou o seu primeiro volume de poesia — Secreta Viagem. David Mourão-Ferreira colaborou ainda nas revistas Graal (1956-1957) e Vértice e em vários jornais, como o Diário Popular e O Primeiro de Janeiro.
Foi poeta, romancista, crítico e ensaísta. A sua poesia caracteriza-se pelas presenças constantes da figura da mulher e do amor, e pela busca deste como forma de conhecimento, sendo considerado como um dos poetas do erotismo na literatura portuguesa. A vivência do tempo e da memória são também constantes na sua obra, marcada, a nível do estilo, por uma demanda permanente de equilíbrio, de que resulta uma escrita tensa, e pela contenção da força lírica e sensível do poeta numa linguagem rigorosa, trabalhada, de grande riqueza rítmica, melódica e imagística, que fazem dele um clássico da modernidade.
Entre os seus livros de poesia encontram-se Tempestade de Verão (1954, Prémio Delfim Guimarães), Os Quatro Cantos do Tempo (1958), In Memoriam Memoriae (1962), Infinito Pessoal ou A Arte de Amar (1962), Do Tempo ao Coração (1966), A Arte de Amar (1967, reunião de obras anteriores), Lira de Bolso (1969), Cancioneiro de Natal (1971, Prémio Nacional de Poesia), Matura Idade (1973), Sonetos do Cativo (1974), As Lições do Fogo (1976), Obra Poética (1980, inclui as obras À Guitarra e À Viola e Órfico Ofício), Os Ramos e os Remos (1985), Obra Poética, 1948-1988 (1988) e Música de Cama (1994, antologia erótica com um livro inédito).
Ensaísta notável, escreveu Vinte Poetas Contemporâneos (1960), Motim Literário (1962), Hospital das Letras (1966), Discurso Directo (1969), Tópicos de Crítica e de História Literária (1969), Sobre Viventes (1976), Presença da «Presença» (1977), Lâmpadas no Escuro (1979), O Essencial Sobre Vitorino Nemésio (1987), Nos Passos de Pessoa (1988, Prémio Jacinto do Prado Coelho), Marguerite Yourcenar: Retrato de Uma Voz (1988), Sob o Mesmo Tecto: Estudos Sobre Autores de Língua Portuguesa (1989), Tópicos Recuperados (1992), Jogo de Espelhos (1993) e Magia, Palavra, Corpo: Perspectiva da Cultura de Língua Portuguesa (1989).
Na ficção narrativa, estreou-se em 1959 com as novelas de Gaivotas em Terra (Prémio Ricardo Malheiros), os contos de Os Amantes (1968), e ainda As Quatro Estações (1980, Prémio da Crítica da Associação Internacional dos Críticos Literários), Um Amor Feliz, romance que o consagrou como ficcionista em 1986 e que lhe valeu vários prémios, entre os quais o Grande Prémio de Romance da APE e o Prémio de Narrativa do Pen Clube Português, e Duas Histórias de Lisboa (1987).
Deixou ainda traduções e uma gravação discográfica de poemas seus intitulada «Um Monumento de Palavras» (1996). Alguns dos seus textos foram adaptados à televisão e ao cinema, como, por exemplo, Aos Costumes Disse Nada, em que se baseou José Fonseca e Costa para filmar, em 1983, «Sem Sombra de Pecado». David Mourão-Ferreira foi ainda autor de poemas para fados, muitos deles celebrizados por Amália Rodrigues, tal como «Madrugada de Alfama». Recebeu, em 1996, o Prémio de Consagração de Carreira da Sociedade Portuguesa de Autores.
Última edição por Anarca em Seg Out 18, 2010 6:13 pm, editado 1 vez(es) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: DAVID MOURÃO-FERREIRA - O POETA DO EROTISMO Seg Out 18, 2010 6:13 pm | |
| E por vezes as noites duram meses
E por vezes as noites duram meses E por vezes os meses oceanos E por vezes os braços que apertamos nunca mais são os mesmos E por vezes
encontramos de nós em poucos meses o que a noite nos fez em muitos anos E por vezes fingimos que lembramos E por vezes lembramos que por vezes
ao tomarmos o gosto aos oceanos só o sarro das noites não dos meses lá no fundo dos copos encontramos
E por vezes sorrimos ou choramos E por vezes por vezes ah por vezes num segundo se envolam tantos anos.
(David Mourão-Ferreira) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: DAVID MOURÃO-FERREIRA - O POETA DO EROTISMO Ter Out 19, 2010 12:18 pm | |
| Ladainha dos póstumos Natais
Há-de vir um Natal e será o primeiro em que se veja à mesa o meu lugar vazio
Há-de vir um Natal e será o primeiro em que hão-de me lembrar de modo menos nítido
Há-de vir um Natal e será o primeiro em que só uma voz me evoque a sós consigo
Há-de vir um Natal e será o primeiro em que não viva já ninguém meu conhecido
Há-de vir um Natal e será o primeiro em que nem vivo esteja um verso deste livro
Há-de vir um Natal e será o primeiro em que terei de novo o Nada a sós comigo
Há-de vir um Natal e será o primeiro em que nem o Natal terá qualquer sentido
Há-de vir um Natal e será o primeiro em que o Nada retome a cor do Infinito
(David Mourão-Ferreira) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: DAVID MOURÃO-FERREIRA - O POETA DO EROTISMO Qua Out 20, 2010 12:35 pm | |
| Romance de Dubrovnik
São estas casas de cinza De cinza petrificada É como se aqui a vida tivesse jogado às cartas e só a morte saíra ganhando em cada jogada É esta rua comprida mas que se chama Platza (embora em eslava grafia se escreva apenas Placa) e que na Ragusa antiga já dois mundos separava De um lado terra latina e do outro terra bárbara São as verdes gelosias são as muralhas douradas a segredarem que a vida se inda quisesse ganhava É agora ao meio-dia a Porta Pile empilhada E são cachos de turistas trepando pelas muralhas tirando fotografias contudo não vendo nada São fileiras de boutiques São cafés sob as arcadas É tudo a fingir que a vida não se dá por derrotada É no porto a maresia quando mais avança a tarde incrustada em cada esquina suspensa de cada iate Mas das naves bizantinas é que ela sente saudades e das galeras esguias que Veneza lhe enviava se bem que tal nostalgia inda hoje a sobressalte Nenhum sabor tem a vida se a morte a não acicata E são argolas vazias as que há no porto à entrada e de onde outrora pendiam correntes sempre de guarda Quem aliás adivinha as marítimas estradas que deste porto saíam que neste nó se cruzavam Com certeza agora vivem na tinta azul de outros mapas Ou permanecem cativas Ou ficaram bloqueadas São em redor tantas ilhas tanta rocha tanta escarpa tantas flutuantes ravinas Mas quando a noite se abate não são mais do que faíscas no mar de prata lavrada E já a Lua surgia na sua rica dalmática Nem mais a preceito vinha do que no céu da Dalmácia Será que o fulgor da vida vem da morte iluminada Subo ao monte Zarkovica (Na língua serbo-croata deve ler-se Djarkovitza) e à sombra desta latada bebo um copo de mastika olho de novo a cidade Ó memória empedernida de uma divina morada Ó ferradura de cinza de algum cavalo com asas Ó mediterrânea figa mais propriamente adriática que foi feita por Posídon e no litoral deixada O que a morte à vida ensina através dos deuses passa Mas não é só nas ruínas que fica a sua pegada
(David Mourão-Ferreira) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: DAVID MOURÃO-FERREIRA - O POETA DO EROTISMO Qui Out 21, 2010 11:11 pm | |
| Primavera
Todo o amor que nos prendera como se fora de cera se quebrava e desfazia ai funesta primavera quem me dera, quem nos dera ter morrido nesse dia
E condenaram-me a tanto viver comigo meu pranto viver, viver e sem ti vivendo sem no entanto eu me esquecer desse encanto que nesse dia perdi
Pão duro da solidão é somente o que nos dão o que nos dão a comer que importa que o coração diga que sim ou que não se continua a viver
Todo o amor que nos prendera se quebrara e desfizera em pavor se convertia ninguém fale em primavera quem me dera, quem nos dera ter morrido nesse dia
(David Mourão-Ferreira) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: DAVID MOURÃO-FERREIRA - O POETA DO EROTISMO Sex Out 22, 2010 2:48 pm | |
| Libertação
Fui à praia, e vi nos limos a nossa vida enredada: ó meu amor, se fugimos, ninguém saberá de nada.
Na esquina de cada rua, uma sombra nos espreita, e nos olhares se insinua, de repente uma suspeita.
Fui ao campo, e vi os ramos decepados e torcidos: ó meu amor, se ficamos, pobres dos nossos sentidos.
Hão-de transformar o mar deste amor numa lagoa: e de lodo hão-de a cercar, porque o mundo não perdoa.
Em tudo vejo fronteiras, fronteiras ao nosso amor. Longe daqui, onde queiras, a vida será maior.
Nem as espranças do céu me conseguem demover Este amor é teu e meu: só na terra o queremos ter.
(David Mourão-Ferreira) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: DAVID MOURÃO-FERREIRA - O POETA DO EROTISMO Dom Out 24, 2010 2:45 pm | |
| Tentei fugir da mancha mais escura
Tentei fugir da mancha mais escura que existe no teu corpo, e desisti. Era pior que a morte o que antevi: era a dor de ficar sem sepultura.
Bebi entre os teus flancos a loucura de não poder viver longe de ti: és a sombra da casa onde nasci, és a noite que à noite me procura.
Só por dentro de ti há corredores e em quartos interiores o cheiro a fruta que veste de frescura a escuridão...
Só por dentro de ti rebentam flores. Só por dentro de ti a noite escuta o que me sai, sem voz, do coração.
(David Mourão-Ferreira) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: DAVID MOURÃO-FERREIRA - O POETA DO EROTISMO Qua Out 27, 2010 8:46 pm | |
| Soneto do amor difícil
A praia abandonada recomeça logo que o mar se vai, a desejá-lo: é como o nosso amor, somente embalo enquanto não é mais que uma promessa...
Mas se na praia a onda se espedaça, há logo nostalgia duma flor que ali devia estar para compor a vaga em seu rumor de fim de raça.
Bruscos e doloridos, refulgimos no silêncio de morte que nos tolhe, como entre o mar e a praia um longo molhe de súbito surgido à flor dos limos.
E deste amor difícil só nasceu desencanto na curva do teu céu.
(David Mourão-Ferreira) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: DAVID MOURÃO-FERREIRA - O POETA DO EROTISMO Sáb Out 30, 2010 2:56 pm | |
| Penélope
Mais do que um sonho: comoção! Sinto-me tonto, enternecido, quando, de noite, as minhas mãos são o teu único vestido.
E recompões com essa veste, que eu, sem saber, tinha tecido, todo o pudor que desfizeste como uma teia sem sentido; todo o pudor que desfizeste a meu pedido.
Mas nesse manto que desfias, e que depois voltas a pôr, eu reconheço os melhores dias do nosso amor.
(David Mourão-Ferreira) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: DAVID MOURÃO-FERREIRA - O POETA DO EROTISMO Dom Out 31, 2010 2:49 pm | |
| Crepúsculo
É quando um espelho, no quarto, se enfastia; quando a noite se destaca da cortina; quando a carne tem o travo da saliva, e a saliva sabe a carne dissolvida; quando a força de vontade ressuscita; quando o pé sobre o sapato se equilibra... e quando às sete da tarde morre o dia - que dentro de nossas almas se ilumina, com luz livida, a palavra despedida.
(David Mourão-Ferreira) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: DAVID MOURÃO-FERREIRA - O POETA DO EROTISMO Qua Nov 03, 2010 1:21 am | |
| A secreta viagem
No barco sem ninguém, anónimo e vazio, ficámos nós os dois, parados, de mão dada ... Como podem só os dois governar um navio? Melhor é desistir e não fazermos nada! Sem um gesto sequer, de súbito esculpidos, tornamo-nos reais, e de maneira, à proa... Que figuras de lenda! Olhos vagos, perdidos... Por entre nossas mâos, o verde mar se escoa... Aparentes senhores de um barco abandonado, nós olhamos, sem ver, a longínqua miragem... Aonde iremos ter? - Com frutos e pecado, se justifica, enflora, a secreta viagem! Agora sei que és tu quem me fora indicada. O resto passa, passa... alheio aos meus sentidos. - Desfeitos num rochedo ou salvos na enseada, a eternidade é nossa, em madeira esculpidos!
(David Mourão-Ferreira) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: DAVID MOURÃO-FERREIRA - O POETA DO EROTISMO Qui Nov 04, 2010 5:04 pm | |
| Presídio
Nem todo o corpo é de carne... Não, nem todo. Que dizer do pescoço, às vezes mármore, às linho, lago, tronco de árvore, nuvem ,ou ave ,ao tacto sempre pouco?... e o ventre ,incosistente como o lodo?... e o morno gradeamnento dos teus baraços? Não, meu amor... Nem todo o corpo é carne: é também água, terra, vento, fogo... É sobretudo sombra à despedida; onda de pedra em cada reencontro; no parque da memória o fugidio vulto da Primavera em pleno Outono... Nem só de carne é feito este presídio, pois no teu corpo existe o mundo todo!
(David Mourão-Ferreira) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: DAVID MOURÃO-FERREIRA - O POETA DO EROTISMO Ter Nov 09, 2010 10:48 pm | |
| Nocturno
Eram, na rua, passos de mulher. Era o meu coração que os soletrava. Era, na jarra, além do malmequer, espectral o espinho de uma rosa brava... Era, no copo, além do gim, o gelo; além do gelo, a roda de limão... Era a mão de ninguém no meu cabelo. Era a noite mais quente deste verão. Era no gira-discos, o Martirio de São Sebastião, de Debussy.... Era, na jarra, de repente, um lirio! Era a certeza de ficar sem ti. Era o ladrar dos cães na vizinhança. Era, na sombra, um choro de criança...
(David Mourão-Ferreira) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: DAVID MOURÃO-FERREIRA - O POETA DO EROTISMO Qui Nov 11, 2010 10:25 pm | |
| Escada sem corrimão
É uma escada em caracol E que não tem corrimão. Vai a caminho do Sol Mas nunca passa do chão. Os degraus, quanto mais altos, Mais estragados estão, Nem sustos nem sobressaltos servem sequer de lição. Quem tem medo não a sobe Quem tem sonhos também não. Há quem chegue a deitar fora O lastro do coração. Sobe-se numa corrida. Corre-se perigos em vão. Adivinhaste: é a vida A escada sem corrimão.
(David Mourão-Ferreira) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: DAVID MOURÃO-FERREIRA - O POETA DO EROTISMO Sex Nov 12, 2010 11:53 pm | |
| As últimas vontades
Deixa ficar a flor, a morte na gaveta, o tempo no degrau. Conheces o degrau: o sétimo degrau depois do patamar; o que range ao passares; o que foi esconderijo do maço de cigarros fumado às escondidas... Deixa ficar a flor. E nem murmures.Deixa o tempo no degrau, a morte na gaveta. Conheces a gaveta: a primeira da esquerda, que se mantém fechada. Quem atirou a chave pela janela fora? Na batalha do ódio, destruam-se,fechados, sem tréguas,os retratos! Deixa ficar a flor. A flor? Não a conheces. Bem sei.Nem eu.Ninguém. Deixa ficar a flor. Não digas nada.Ouve. Não ouves o degrau? Quem sobe agora a escada? Como vem devagar! Tão devagar que sobe... Não digas nada.Ouve: é com certeza alguém, alguém que traz a chave. Deixa ficar a flor.
(David Mourão-Ferreira) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: DAVID MOURÃO-FERREIRA - O POETA DO EROTISMO Sáb Nov 13, 2010 10:29 pm | |
| Soneto do Cativo
Se é sem dúvida Amor esta explosão de tantas sensações contraditórias; a sórdida mistura das memórias, tão longe da verdade e da invenção;
o espelho deformante; a profusão de frases insensatas, incensórias; a cúmplice partilha nas histórias do que os outros dirão ou não dirão;
se é sem dúvida Amor a cobardia de buscar nos lençóis a mais sombria razão de encantamento e de desprezo;
não há dúvida, Amor, que te não fujo e que, por ti, tão cego, surdo e sujo, tenho vivido eternamente preso!
(David Mourão-Ferreira) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: DAVID MOURÃO-FERREIRA - O POETA DO EROTISMO Qua Nov 17, 2010 12:26 am | |
| Canção primaveril
Anda no ar a excitação de seios subito exibidos à torva luz de um alçapão, por onde os corpos rolarão, mordidos!
Ou é um deus, oi foi a Morte que nos vestiu este torpor; e a Primavera é um chicote, abrindo as veias e o decote ao meu amor!
Esqueço que os dedos têm ossos: é só de sangue esta caricia; apenas nervos os pescoços... Mas nos teus olhos, nos meus olhos, a luz da morte brilha.
(David Mourão-Ferreira) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: DAVID MOURÃO-FERREIRA - O POETA DO EROTISMO Qui Nov 18, 2010 11:42 pm | |
| É quando estás de joelhos...
É quando estás de joelhos que és toda bicho da Terra toda fulgente de pêlos toda brotada de trevas toda pesada nos beiços de um barro que nunca seca nem no cântico dos seios nem no soluço das pernas toda raízes nos dedos nas unhas toda silvestre nos olhos toda nascente no ventre toda floresta em tudo toda segredo se de joelhos me entregas sempre que estás de joelhos todos os frutos da Terra.
(David Mourão-Ferreira) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: DAVID MOURÃO-FERREIRA - O POETA DO EROTISMO Sáb Nov 20, 2010 12:00 am | |
| Momento
Chegado o momento em que tudo é tudo dos teus pés ao ventre das ancas à nuca ouve-se a torrente de um rio confuso Levanta-se o vento Comparece a lua Entre linguas e dentes este sol nocturno Nos teus quatro membros de curvos arbustos lavra um só incêndio que se torna muitos Cadente silêncio sob o que murmuras Por fora por dentro do bosque do púbis crepitam-me os dedos tocando alaúde nas cordas dos nervos a que te reduzes Assim o momento em que tudo é tudo Mais concretamente água fogo música
(David Mourão-Ferreira) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: DAVID MOURÃO-FERREIRA - O POETA DO EROTISMO Sáb Nov 20, 2010 2:21 pm | |
| Alvorada
E de súbito um corpo! Alvorada sombria, Alvorada nefasta envolta nuns cabelos... Eram negros e vivos. Quem sofria, Só de vê-los?
Eram negros; e vivos como chamas. Brilhavam, azulados sob a chuva. Brilhavam, azulados, como escamas De sereia sombria, sob a chuva...
Veio cedo de mais a trovoada: O vento me lembrou De quem eu sou. - Alvorada suspensa! Contemplada por alguém que chegou a uma sacada e à beira da varanda vacilou.
(David Mourão-Ferreira) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: DAVID MOURÃO-FERREIRA - O POETA DO EROTISMO Dom Nov 21, 2010 10:32 pm | |
| Nocturno
O desenho redondo do teu seio Tornava-te mais cálida, mais nua Quando eu pensava nele... Imaginei-o, À beira-mar, de noite, havendo lua...
Talvez a espuma, vindo, conseguisse Ornar-te o busto de uma renda leve E a lua, ao ver-te nua, descobrisse, Em ti, a branca irmã que nunca teve...
Pelo que no teu colo há de suspenso, Te supunham as ondas uma delas... Todo o teu corpo, iluminado, tenso, Era um convite lúcido às estrelas...
Imaginei-te assim á beira-mar, Só porque o nosso quarto era tão estreito... - E, sonolento, deixo-me afogar No desenho redondo do teu peito...
(David Mourão-Ferreira) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: DAVID MOURÃO-FERREIRA - O POETA DO EROTISMO Ter Nov 23, 2010 9:06 pm | |
| Entretanto
Entre missas e mísseis teus irmãos Entre medos e mitos teus amigos Entretanto entre portas tu contigo Entretido a sonhar como eles vão.
Entre que muros moram suas mãos Entre que murtas montam seus abrigos Entre quem possa ver deste postigo Entre que morros morrem de aflição
Entre murros enfrentam-se os mais tristes Entre jogos ou danças proibidas Entre Deus e a droga os menos fortes
Entre todos e tu vê o que existe Entreacto em comum somente a vida Entre tímidas aspas já a morte.
(David Mourão-Ferreira) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: DAVID MOURÃO-FERREIRA - O POETA DO EROTISMO Qua Nov 24, 2010 4:12 pm | |
| Praia do Paraíso
Era a primeira vez que nus os nossos corpos Apesar da penumbra á vontade se olhavam Surpresos de saber que tinham tantos olhos Que podiam ser luz de tantos candelabros Era a primeira vez cerrados os estores Só o rumor do mar permanecera em casa E sabias a sal, e cheiravas a limos Que tivesses ouvido o canto das cigarras Havia mais que céu no céu do teu sorriso Madrugada de tudo em tudo que sonhavas Em teus braços tocar era tocar os ramos Que estremecem ao sol desde que o mundo é mundo É preciso afinal chegar aos cinquenta anos Para se ver que aos vinte é que se teve tudo. (David Mourão-Ferreira) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: DAVID MOURÃO-FERREIRA - O POETA DO EROTISMO Sáb Nov 27, 2010 1:52 am | |
| O Corpo os Corpos
O teu corpo o meu corpo E em vez dos corpos que somados seriam nossos corpos implantam-se no espaço novos corpos ora mais ora menos que dois corpos
Que escorpião de súbito estes corpos quando um espelho reflecte os nossos corpos e num só corpo feitos os dois corpos ao mesmo tempo somos quatro corpos
Não indagues agora se o meu corpo se contenta só corpo no teu corpo ou se busca atingir todos os corpos
que no fundo residem num só corpo Mas indaga sem pausa além do corpo o finito infinito destes corpos
David Mourão-Ferreira, in “Obra Poética” | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: DAVID MOURÃO-FERREIRA - O POETA DO EROTISMO Seg Nov 29, 2010 10:02 pm | |
| Ternura
Desvio dos teus ombros o lençol, que é feito de ternura amarrotada, da frescura que vem depois do sol, quando depois do sol não vem mais nada...
Olho a roupa no chão: que tempestade! Há restos de ternura pelo meio, como vultos perdidos na cidade onde uma tempestade sobreveio...
Começas a vestir-te, lentamente, e é ternura também que vou vestindo, para enfrentar lá fora aquela gente que da nossa ternura anda sorrindo...
Mas ninguém sonha a pressa com que nós a despimos assim que estamos sós!
David Mourão-Ferreira, in "Infinito Pessoal" | |
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| Assunto: Re: DAVID MOURÃO-FERREIRA - O POETA DO EROTISMO | |
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