| | MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO - O POETA DA ANGÚSTIA | |
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Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO - O POETA DA ANGÚSTIA Ter Jan 19, 2010 7:20 pm | |
| Nasceu, no seio de uma abastada família alto-burguesa, sendo filho e neto de militares. Órfão de mãe com apenas dois anos (1892), ficou entregue ao cuidado dos avós, indo viver para a Quinta da Vitória, na freguesia de Camarate, às portas de Lisboa, aí passando grande parte da infância.
Inicia-se na poesia com doze anos, sendo que aos quinze já traduzia Victor Hugo, e com dezesseis, Goethe e Schiller. No liceu teve ainda algumas experiências episódicas como ator, e começa a escrever.
Em 1911, com dezenove anos, vai para Coimbra, onde se matricula na Faculdade de Direito, mas não conclui sequer o ano. Aí, contudo, viria a conhecer aquele que foi, sem dúvida, o seu melhor e mais compreensivo amigo – Fernando Pessoa –, o qual, em 1912, o introduziu no ciclo dos modernistas.
Desiludido com a «cidade dos estudantes», segue para Paris a fim de prosseguir os estudos superiores, com o auxílio financeiro do pai. Cedo, porém, deixou de frequentar as aulas na Sorbonne, dedicando-se a uma vida boémia, deambulando pelos cafés e salas de espectáculo, chegando a passar fome e debatendo-se com os seus desesperos, situação que culminou na ligação emocional a uma prostituta, a fim de combater as suas frustrações e desesperos.
Na capital francesa viria a conhecer Guilherme de Santa-Rita (Santa-Rita Pintor). Inadaptado socialmente e psicologicamente instável, foi neste ambiente que compôs grande parte da sua obra poética e a correspondência com o seu confidente Pessoa; é, pois, entre 1912 e 1916 (o ano da sua morte), que se inscreve a sua fugaz – e no entanto assaz profícua – carreira literária.
Entre 1913 e 1914 vem a Lisboa com certa regularidade, regressando à capital devido à deflagração do conflito entre a Sérvia e a Áustria-Hungria, o qual a breve trecho se tornou uma conflagração à escala europeia – a I Guerra Mundial. Com Pessoa e ainda Almada-Negreiros integrou o primeiro grupo modernista português (o qual, influenciado pelo cosmopolitismo e pelas vanguardas culturais europeias, pretendia escandalizar a sociedade burguesa e urbana da época), sendo responsável pela edição da revista literária Orpheu (e que por isso mesmo ficou sendo conhecido como a Geração d’Orpheu ou Grupo d’Orpheu), um verdadeiro escândalo literário à época, motivo pelo qual apenas saíram dois números (Março e Junho de 1915; o terceiro, embora impresso, não foi publicado, tendo os seus autores sido alvo da chacota social) – ainda que hoje seja, reconhecidamente, um dos marcos da história da literatura portuguesa, responsável pela agitação do meio cultural português, bem como pela introdução do modernismo em Portugal.
Em Julho de 1915 regressa a Paris, escrevendo a Pessoa cartas de uma crescente angústia, das quais ressalta não apenas a imagem lancinante de um homem perdido no «labirinto de si próprio», mas também a evolução e maturidade do processo de escrita de Sá-Carneiro.
Uma vez que a vida que trazia não lhe agradava, e aquela que idealizava tardava em se concretizar, Sá-Carneiro entrou numa cada vez maior angústia, que viria a conduzi-lo ao seu suicídio prematuro, perpetrado no Hôtel de Nice, no bairro de Montmartre em Paris, com o recurso a cinco frascos de arseniato de estricnina.
Contava tão-só vinte e seis anos. Extravagante tanto na morte como em vida (de que o poema Fim é um dos mais belos exemplos), convidou para presenciar a sua agonia o seu amigo José de Araújo. E apesar de o grupo modernista português ter perdido um dos seus mais significativos colaboradores, nem por isso o entusiasmo dos restantes membros esmoreceu – no segundo número da revista Athena, Pessoa dedicou-lhe um belo texto, apelidando-o de «génio não só da arte como da inovação dela», e dizendo dele, retomando um aforismo das Báquides (IV, 7, 18), de Plauto, que «Morre jovem o que os Deuses amam» (tradução literal de Quem di diligunt adulescens moritur).
Verdadeiro insatisfeito e inconformista (nunca se conseguiu entender com a maior parte dos que o rodeavam, nem tão pouco ajustar-se à vida prática, devido às suas dificuldades emocionais), mas também incompreendido (pelo modo com os contemporâneos olhavam o seu jeito poético), profetizou acertadamente que no futuro se faria jus à sua obra, no que não falhou.
Com efeito, reconhecido no seu tempo apenas por uma fina élite, à medida que a sua obra e correspondência foi publicada, ao longo dos anos, tornou-se acessível ao grande público, sendo atualmente considerado um dos maiores expoentes da literatura moderna em língua portuguesa. Embora não tenha a mesma repercussão de Fernando Pessoa, a sua genialidade é tão grande (senão mesmo maior) que a de Pessoa, mas porém muito mais próxima da loucura que a do seu amigo.
A terra que o acolheu na infância – Camarate –, e a quem ele dedicou também algumas das suas poesias, homenageou-o, conferindo o seu nome a uma escola local. O seu poema Fim foi musicado por um grupo português no final dos anos 1980, os Trovante. Mais tarde, o seu poema O Outro foi também musicado pela cantora brasileira Adriana Calcanhotto. | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO - O POETA DA ANGÚSTIA Ter Jan 19, 2010 7:24 pm | |
| O Remédio
A minha vida sentou-se E não há quem a levante, Que desde o Poente ao Levante A minha vida fartou-se.
E ei-la, a mona, lá está, Estendida, a perna traçada, No infindável sofá Da minha Alma estofada.
Pois é assim: a minha Alma Outrora a sonhar de Rússias, Espapaçou-se de calma, E hoje sonha só pelúcias.
Isto assim não pode ser... Mas como achar um remédio? - P'ra acabar este intermédio Lembrei-me de endoidecer:
O que era fácil - partindo Os móveis do meu hotel, Ou para a rua saindo De barrete de papel.
(Mário de Sá-Carneiro) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO - O POETA DA ANGÚSTIA Qua Jan 20, 2010 2:56 pm | |
| Fim
Quando eu morrer batam em latas, Rompam aos saltos e aos pinotes, Façam estalar no ar chicotes, Chamem palhaços e acrobatas!
Que o meu caixão vá sobre um burro Ajaezado à andaluza... A um morto nada se recusa, Eu quero por força ir de burro.
(Mário de Sá-Carneiro) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO - O POETA DA ANGÚSTIA Qui Jan 21, 2010 2:14 pm | |
| Último Soneto
Que rosas fugitivas foste ali! Requeriam-te os tapetes, e vieste... ... Se me dói hoje o bem que me fizeste, É justo, porque muito te devi.
Em que seda de afagos me envolvi Quando entraste, nas tardes que apareceste! Como fui de percal quando me deste Tua boca a beijar, que remordi...
Pensei que fosse o meu o teu cansaço Que seria entre nós um longo abraço O tédio que, tão esbelta, te curvava...
E fugiste... Que importa? Se deixaste A lembrança violeta que animaste, Onde a minha saudade a Cor se trava?...
(Mário de Sá-Carneiro) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO - O POETA DA ANGÚSTIA Sex Jan 22, 2010 6:57 pm | |
| O Recreio
Na minha Alma há um balouço Que está sempre a balouçar... Balouço à beira dum poço, Bem difícil de montar...
... E um menino de bibe Sobre ele sempre a brincar...
Se a corda se parte um dia (E já vai estando esgarçada), Era uma vez a folia: Morre a criança afogada...
... Cá por mim não mudo a corda, Seria grande estopada...
Se o indez morre, deixá-lo... Mais vale morrer de bibe Que de casaca... Deixá-lo Balouçar-se enquanto vive...
... Mudar a corda era fácil... Tal ideia nunca tive...
(Mário de Sá-Carneiro) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO - O POETA DA ANGÚSTIA Seg Jan 25, 2010 6:08 pm | |
| Torniquete
A tômbola anda depressa, Nem sei quando irá parar... Aonde, pouco me importa; O importante é que pare... ... A minha vida não cessa De ser sempre a mesma porta Eternamente a abanar...
Abriu-se agora o salão Onde há gente a conversar. Entrei sem hesitação... Somente o que se vai dar? A meio da reunião, Pela certa disparato, Volvo a mim a todo o pano:
Às cambalhotas desato, E salto sobre o piano... ... Vai ser bonita a função! Esfrangalho as partituras, Quebro toda a caqueirada, Arrebento à gargalhada, E fujo pelo saguão...
Meses depois, as gazetas Darão críticas completas, Indecentes e patetas, Da minha última obra... E eu... prà cama outra vez, Curtindo febre e revés, Tocado de Estrela e Cobra...
(Mário de Sá-Carneiro) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO - O POETA DA ANGÚSTIA Ter Jan 26, 2010 5:31 pm | |
| Serradura
A minha vida sentou-se E não há quem a levante, Que desde o Poente ao Levante A minha vida fartou-se.
E ei-la, a mona, lá está, Estendida, a perna traçada, No indindável sofá Da minha Alma estofada.
Pois é assim: a minha Alma Outrora a sonhar de Rússias, Espapaçou-se de calma, E hoje sonha só pelúcias.
Vai aos Cafés, pede um bock, Lê o de castigo, E não há nenhum remoque Que a regresse ao Oiro antigo:
Dentro de mim é um fardo Que não pesa, mas que maça: O zumbido dum moscardo, Ou comichão que não passa.
Folhetim da Pelo nosso Júlio Dantas - Ou qualquer coisa entre tantas Duma antipatia igual…
O raio já bebe vinho, Coisa que nunca fazia, E fuma o seu cigarrinho Em plena burocracia!…
Qualquer dia, pela certa, Quando eu mal me precate, É capaz dum disparate, Se encontra a porta aberta…
Isto assim não pode ser… Mas como achar um remédio? - Pra acabar este intermédio Lembrei-me de endoidecer:
O que era fácil - partindo Os móveis do meu hotel, Ou para a rua saindo De barrete de papel
A gritar… Mas a minha Alma, em verdade, Não merece tal façanha, Tal prova de lealdade…
Vou deixá-la - decidido - No lavabo dum Café, Como um anel esquecido. É um fim mais raffiné.
(Mário de Sá-Carneiro) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO - O POETA DA ANGÚSTIA Qua Jan 27, 2010 1:12 pm | |
| Desencanto em Função da Posse
Nada me encanta já; tudo me aborrece, me nauseia. Os meus próprios raros entusiasmos, se me lembro deles, logo se me esvaem - pois, ao medi-los, encontro os tão mesquinhos, tão de pacotilha… Quer saber? Outrora, à noite, no meu leito, antes de dormir, eu punha-me a divagar. E era feliz por momentos, entressonhando a glória, o amor, os êxtases… Mas hoje já não sei com que sonhos me robustecer. Acastelei os maiores… eles próprios me fartaram: são sempre os mesmos - e é impossível achar outros… Depois, não me saciam apenas as coisas que possuo - aborrecem-me também as que não tenho, porque, na vida como nos sonhos, são sempre as mesmas. De resto, se às vezes posso sofrer por não possuir certas coisas que ainda não conheço inteiramente, a verdade é que, descendo-me melhor, logo averiguo isto: Meu Deus, se as tivera, ainda maior seria a minha dor, o meu tédio.
Mário de Sá-Carneiro, in 'A Confissão de Lúcio' | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO - O POETA DA ANGÚSTIA Qui Jan 28, 2010 1:17 pm | |
| A Inegualável
Ai, como eu te queria toda de violetas E flébil de setim... Teus dedos longos, de marfim, Que os sombreassem joias pretas...
E tão febril e delicada Que não podesses dar um passo - Sonhando estrelas, transtornada, Com estampas de côr no regaço...
Queria-te nua e friorenta, Aconchegando-te em zibelinas - Sonolenta, Ruiva de éteres e morfinas...
Ah! que as tuas nostalgias fôssem guisos de prata - Teus frenesis, lantejoulas; E os ócios em que estiolas, Luar que se desbarata...
Teus beijos, queria-os de tule, Transparecendo carmim - Os teus espasmos, de sêda...
- Água fria e clara numa noite azul, Água, devia ser o teu amor por mim...
Mário de Sá-Carneiro, in 'Indícios de Oiro' | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO - O POETA DA ANGÚSTIA Sex Jan 29, 2010 7:11 pm | |
| As Coisas Secretas da Alma
Em todas as almas há coisas secretas cujo segredo é guardado até à morte delas. E são guardadas, mesmo nos momentos mais sinceros, quando nos abismos nos expomos, todos doloridos, num lance de angústia, em face dos amigos mais queridos - porque as palavras que as poderiam traduzir seriam ridículas, mesquinhas, incompreensíveis ao mais perspicaz. Estas coisas são materialmente impossíveis de serem ditas. A própria Natureza as encerrou - não permitindo que a garganta humana pudesse arranjar sons para as exprimir - apenas sons para as caricaturar. E como essas ideias-entranha são as coisas que mais estimamos, falta-nos sempre a coragem de as caricaturar. Daqui os «isolados» que todos nós, os homens, somos. Duas almas que se compreendam inteiramente, que se conheçam, que saibam mutuamente tudo quanto nelas vive - não existem. Nem poderiam existir. No dia em que se compreendessem totalmente - ó ideal dos amorosos! - eu tenho a certeza que se fundiriam numa só. E os corpos morreriam.
Mário de Sá-Carneiro, in 'Cartas a Fernando Pessoa' | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO - O POETA DA ANGÚSTIA Ter Fev 02, 2010 3:06 pm | |
| Angulo
Aonde irei neste sem-fim perdido, Neste mar ôco de certezas mortas? - Fingidas, afinal, todas as portas Que no dique julguei ter construido...
- Barcaças dos meus impetos tigrados, Que oceano vos dormiram de Segrêdo? Partiste-vos, transportes encantados, De embate, em alma ao rôxo, a que rochêdo?...
- Ó nau de festa, ó ruiva de aventura Onde, em Champanhe, a minha ânsia ia, Quebraste-vos também ou, por ventura, Fundeaste a Ouro em portos d'alquimia?...
Chegaram à baía os galeões Com as sete Princesas que morreram. Regatas de luar não se correram... As bandeiras velaram-se, orações...
Detive-me na ponte, debruçado, Mas a ponte era falsa - e derradeira. Segui no cais. O cais era abaulado, Cais fingido sem mar á sua beira...
- Por sôbre o que Eu não sou há grandes pontes Que um outro, só metade, quer passar Em miragens de falsos horizontes - Um outro que eu não posso acorrentar...
Mário de Sá-Carneiro, in 'Indícios de Oiro' | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO - O POETA DA ANGÚSTIA Qua Fev 03, 2010 2:51 pm | |
| 16
Esta inconstancia de mim próprio em vibração É que me ha de transpôr às zonas intermédias, E seguirei entre cristais de inquietação, A retinir, a ondular... Soltas as rédeas, Meus sonhos, leões de fogo e pasmo domados a tirar A tôrre d'ouro que era o carro da minh'Alma, Transviarão pelo deserto, muribundos de Luar - E eu só me lembrarei num baloiçar de palma... Nos oásis, depois, hão de se abismar gumes, A atmosfera ha de ser outra, noutros planos: As rãs hão de coaxar-me em roucos tons humanos Vomitando a minha carne que comeram entre estrumes...
Há sempre um grande Arco ao fundo dos meus olhos... A cada passo a minha alma é outra cruz, E o meu coração gira: é uma roda de côres... Não sei aonde vou, nem vejo o que persigo... Já não é o meu rastro o rastro d'oiro que ainda sigo... Resvalo em pontes de gelatina e de bolôres... Hoje, a luz para mim é sempre meia-luz...
As mesas do Café endoideceram feitas ar... Caiu-me agora um braço... Olha, lá vai êle a valsar Vestido de casaca, nos salões do Vice-Rei...
(Subo por mim acima como por uma escada de corda, E a minha Ansia é um trapézio escangalhado...).
Mário de Sá-Carneiro, in 'Indícios de Oiro' | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO - O POETA DA ANGÚSTIA Sex Fev 05, 2010 2:49 pm | |
| Salomé
Insónia rôxa. A luz a virgular-se em mêdo, Luz morta de luar, mais Alma do que a lua... Ela dança, ela range. A carne, alcool de nua, Alastra-se pra mim num espasmo de segrêdo...
Tudo é capricho ao seu redór, em sombras fátuas... O arôma endoideceu, upou-se em côr, quebrou... Tenho frio... Alabastro!... A minh'Alma parou... E o seu corpo resvala a projectar estátuas...
Ela chama-me em Iris. Nimba-se a perder-me, Golfa-me os seios nus, ecôa-me em quebranto... Timbres, elmos, punhais... A doida quer morrer-me:
Mordoura-se a chorar - há sexos no seu pranto... Ergo-me em som, oscilo, e parto, e vou arder-me Na bôca imperial que humanisou um Santo...
Mário de Sá-Carneiro, in 'Indícios de Oiro' | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO - O POETA DA ANGÚSTIA Seg Fev 08, 2010 5:40 pm | |
| A Queda
E eu que sou o rei de toda esta incoerência, Eu próprio turbilhão, anseio por fixá-la E giro até partir... Mas tudo me resvala Em bruma e sonolência.
Se acaso em minhas mãos fica um pedaço de ouro, Volve-se logo falso... ao longe o arremesso... Eu morro de desdém em frente dum tesouro, Morro á mingua, de excesso.
Alteio-me na côr à fôrça de quebranto, Estendo os braços de alma - e nem um espasmo venço!... Peneiro-me na sombra - em nada me condenso... Agonias de luz eu vibro ainda entanto.
Não me pude vencer, mas posso-me esmagar, - Vencer ás vezes é o mesmo que tombar - E como inda sou luz, num grande retrocesso, Em raivas ideais, ascendo até ao fim: Olho do alto o gêlo, ao gêlo me arremesso...
Tombei... E fico só esmagado sobre mim!...
Mário de Sá-Carneiro, in 'Dispersão' | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO - O POETA DA ANGÚSTIA Ter Fev 09, 2010 2:00 pm | |
| Rodopio
Volteiam dentro de mim, Em rodopio, em novelos, Milagres, uivos, castelos, Forcas de luz, pesadelos, Altas tôrres de marfim.
Ascendem hélices, rastros... Mais longe coam-me sois; Há promontórios, farois, Upam-se estátuas de herois, Ondeiam lanças e mastros.
Zebram-se armadas de côr, Singram cortejos de luz, Ruem-se braços de cruz, E um espelho reproduz, Em treva, todo o esplendor...
Cristais retinem de mêdo, Precipitam-se estilhaços, Chovem garras, manchas, laços... Planos, quebras e espaços Vertiginam em segrêdo.
Luas de oiro se embebedam, Rainhas desfolham lirios; Contorcionam-se círios, Enclavinham-se delírios. Listas de som enveredam...
Virgulam-se aspas em vozes, Letras de fogo e punhais; Há missas e bacanais, Execuções capitais, Regressos, apoteoses.
Silvam madeixas ondeantes, Pungem lábios esmagados, Há corpos emmaranhados, Seios mordidos, golfados, Sexos mortos de anseantes...
(Há incenso de esponsais, Há mãos brancas e sagradas, Há velhas cartas rasgadas, Há pobres coisas guardadas - Um lenço, fitas, dedais...)
Há elmos, troféus, mortalhas, Emanações fugidias, Referências, nostalgias, Ruínas de melodias, Vertigens, erros e falhas.
Há vislumbres de não-ser, Rangem, de vago, neblinas; Fulcram-se poços e minas, Meandros, paúes, ravinas Que não ouso percorrer...
Há vácuos, há bolhas de ar, Perfumes de longes ilhas, Amarras, lemes e quilhas - Tantas, tantas maravilhas Que se não podem sonhar!...
Mário de Sá-Carneiro, in 'Dispersão' | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO - O POETA DA ANGÚSTIA Qua Fev 10, 2010 5:44 pm | |
| Além-Tédio
Nada me expira já, nada me vive - Nem a tristeza nem as horas belas. De as não ter e de nunca vir a tê-las, Fartam-me até as coisas que não tive.
Como eu quisera, emfim de alma esquecida, Dormir em paz num leito de hospital... Cansei dentro de mim, cansei a vida De tanto a divagar em luz irreal.
Outrora imaginei escalar os céus À força de ambição e nostalgia, E doente-de-Novo, fui-me Deus No grande rastro fulvo que me ardia.
Parti. Mas logo regressei à dor, Pois tudo me ruiu... Tudo era igual: A quimera, cingida, era real, A propria maravilha tinha côr!
Ecoando-me em silêncio, a noite escura Baixou-me assim na queda sem remédio; Eu próprio me traguei na profundura, Me sequei todo, endureci de tedio.
E só me resta hoje uma alegria: É que, de tão iguais e tão vazios, Os instantes me esvoam dia a dia Cada vez mais velozes, mais esguios...
Mário de Sá-Carneiro, in 'Dispersão' | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO - O POETA DA ANGÚSTIA Sex Fev 12, 2010 2:09 pm | |
| Como Eu não Possuo
Olho em volta de mim. Todos possuem - Um afecto, um sorriso ou um abraço. Só para mim as ânsias se diluem E não possuo mesmo quando enlaço.
Roça por mim, em longe, a teoria Dos espasmos golfados ruivamente; São êxtases da côr que eu fremiria, Mas a minh'alma pára e não os sente!
Quero sentir. Não sei... perco-me todo... Não posso afeiçoar-me nem ser eu: Falta-me egoísmo pra ascender ao céu, Falta-me unção pra me afundar no lôdo.
Não sou amigo de ninguém. Pra o ser Forçoso me era antes possuir Quem eu estimasse - ou homem ou mulher, E eu não logro nunca possuir!...
Castrado de alma e sem saber fixar-me, Tarde a tarde na minha dor me afundo... Serei um emigrado doutro mundo Que nem na minha dor posso encontrar-me?...
Como eu desejo a que ali vai na rua, Tão ágil, tão agreste, tão de amor... Como eu quisera emmaranhá-la nua, Bebê-la em espasmos d'harmonia e côr!...
Desejo errado... Se a tivera um dia, Toda sem véus, a carne estilizada Sob o meu corpo arfando transbordada, Nem mesmo assim - ó ânsia! - eu a teria...
Eu vibraria só agonizante Sobre o seu corpo de êxtases dourados, Se fôsse aquêles seios transtornados, Se fôsse aquêle sexo aglutinante...
De embate ao meu amor todo me ruo, E vejo-me em destrôço até vencendo: É que eu teria só, sentindo e sendo Aquilo que estrebucho e não possuo.
Mário de Sá-Carneiro, in 'Dispersão' | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO - O POETA DA ANGÚSTIA Seg Mar 01, 2010 6:40 pm | |
| Quási
Um pouco mais de sol - eu era brasa, Um pouco mais de azul - eu era além. Para atingir, faltou-me um golpe d'asa... Se ao menos eu permanecesse àquem...
Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído Num baixo mar enganador de espuma; E o grande sonho despertado em bruma, O grande sonho - ó dôr! - quási vivido...
Quási o amor, quási o triunfo e a chama, Quási o princípio e o fim - quási a expansão... Mas na minh'alma tudo se derrama... Entanto nada foi só ilusão!
De tudo houve um começo... e tudo errou... - Ai a dôr de ser-quási, dor sem fim... - Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim, Asa que se elançou mas não voou...
Momentos d'alma que desbaratei... Templos aonde nunca pus um altar... Rios que perdi sem os levar ao mar... Ansias que foram mas que não fixei...
Se me vagueio, encontro só indicios... Ogivas para o sol - vejo-as cerradas; E mãos de herói, sem fé, acobardadas, Puseram grades sôbre os precipícios...
Num impeto difuso de quebranto, Tudo encetei e nada possuí... Hoje, de mim, só resta o desencanto Das coisas que beijei mas não vivi...
Um pouco mais de sol - e fôra brasa, Um pouco mais de azul - e fôra além. Para atingir, faltou-me um golpe de aza... Se ao menos eu permanecesse àquem...
Mário de Sá-Carneiro, in 'Dispersão' | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO - O POETA DA ANGÚSTIA Qui Mar 04, 2010 7:05 pm | |
| Estátua Falsa
Só de ouro falso os meus olhos se douram; Sou esfinge sem mistério no poente. A tristeza das coisas que não foram Na minha'alma desceu veladamente.
Na minha dor quebram-se espadas de ânsia, Gomos de luz em treva se misturam. As sombras que eu dimano não perduram, Como Ontem, para mim, Hoje é distancia.
Já não estremeço em face do segredo; Nada me aloira já, nada me aterra: A vida corre sobre mim em guerra, E nem sequer um arrepio de mêdo!
Sou estrêla ébria que perdeu os céus, Sereia louca que deixou o mar; Sou templo prestes a ruir sem deus, Estátua falsa ainda erguida ao ar...
Mário de Sá-Carneiro, in 'Dispersão' | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO - O POETA DA ANGÚSTIA Sex Mar 05, 2010 5:11 pm | |
| Dispersão
Perdi-me dentro de mim Porque eu era labirinto, E hoje, quando me sinto, É com saudades de mim.
Passei pela minha vida Um astro doido a sonhar. Na ânsia de ultrapassar, Nem dei pela minha vida...
Para mim é sempre ontem, Não tenho amanhã nem hoje: O tempo que aos outros foge Cai sobre mim feito ontem.
(O Domingo de Paris Lembra-me o desaparecido Que sentia comovido Os Domingos de Paris:
Porque um domingo é familia, É bem-estar, é singeleza, E os que olham a beleza Não têm bem-estar nem familia).
O pobre moço das ânsias... Tu, sim, tu eras alguém! E foi por isso também Que te abismaste nas ânsias.
A grande ave dourada Bateu asas para os céus, Mas fechou-as saciada Ao ver que ganhava os céus.
Como se chora um amante, Assim me choro a mim mesmo: Eu fui amante inconstante Que se traíu a si mesmo.
Não sinto o espaço que encerro Nem as linhas que projecto: Se me olho a um espelho, erro - Não me acho no que projecto.
Regresso dentro de mim, Mas nada me fala, nada! Tenho a alma amortalhada, Sequinha, dentro de mim.
Não perdi a minha alma, Fiquei com ela, perdida. Assim eu choro, da vida, A morte da minha alma.
Saudosamente recordo Uma gentil companheira Que na minha vida inteira Eu nunca vi... Mas recordo
A sua bôca doirada E o seu corpo esmaecido, Em um hálito perdido Que vem na tarde doirada.
(As minhas grandes saudades São do que nunca enlacei. Ai, como eu tenho saudades Dos sonhos que não sonhei!...)
E sinto que a minha morte - Minha dispersão total - Existe lá longe, ao norte, Numa grande capital.
Vejo o meu último dia Pintado em rolos de fumo, E todo azul-de-agonia Em sombra e além me sumo.
Ternura feita saudade, Eu beijo as minhas mãos brancas... Sou amor e piedade Em face dessas mãos brancas...
Tristes mãos longas e lindas Que eram feitas pra se dar... Ninguém mas quis apertar... Tristes mãos longas e lindas...
E tenho pêna de mim, Pobre menino ideal... Que me faltou afinal? Um elo? Um rastro?... Ai de mim!...
Desceu-me nalma o crepusculo; Eu fui alguém que passou. Serei, mas já não me sou; Não vivo, durmo o crepúsculo.
Alcool dum sono outonal Me penetrou vagamente A difundir-me dormente Em uma bruma outonal.
Perdi a morte e a vida, E, louco, não enlouqueço... A hora foge vivida, Eu sigo-a, mas permaneço...
Castelos desmantelados, Leões alados sem juba...
Mário de Sá-Carneiro, in 'Dispersão' | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO - O POETA DA ANGÚSTIA Seg Mar 08, 2010 7:27 pm | |
| Alcool
Guilhotinas, pelouros e castelos Resvalam longamente em procissão; Volteiam-me crepúsculos amarelos, Mordidos, doentios de roxidão.
Batem asas d'auréola aos meus ouvidos, Grifam-me sons de côr e de perfumes, Ferem-me os olhos turbilhões de gumes, Desce-me a alma, sangram-me os sentidos.
Respiro-me no ar que ao longe vem, Da luz que me ilumina participo; Quero reunir-me, e todo me dissipo - Luto, estrebucho... Em vão! Silvo pra além...
Corro em volta de mim sem me encontrar... Tudo oscila e se abate como espuma... Um disco de ouro surge a voltear... Fecho os meus olhos com pavor da bruma...
Que droga foi a que me inoculei? Ópio d'inferno em vez de paraíso?... Que sortilégio a mim próprio lancei? Como é que em dor genial eu me eterizo?
Nem ópio nem morfina. O que me ardeu, Foi alcool mais raro e penetrante: É só de mim que eu ando delirante - Manhã tão forte que me anoiteceu.
Mário de Sá-Carneiro, in 'Dispersão' | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO - O POETA DA ANGÚSTIA Ter Mar 09, 2010 6:48 pm | |
| Partida
Ao ver escoar-se a vida humanamente Em suas águas certas, eu hesito, E detenho-me às vezes na torrente Das coisas geniais em que medito.
Afronta-me um desejo de fugir Ao mistério que é meu e me seduz. Mas logo me triunfo. A sua luz Não há muitos que a saibam reflectir.
A minh'alma nostálgica de além, Cheia de orgulho, ensombra-se entretanto, Aos meus olhos ungidos sobe um pranto Que tenho a fôrça de sumir também.
Porque eu reajo. A vida, a natureza, Que são para o artista? Coisa alguma. O que devemos é saltar na bruma, Correr no azul á busca da beleza.
É subir, é subir àlem dos céus Que as nossas almas só acumularam, E prostrados resar, em sonho, ao Deus Que as nossas mãos de auréola lá douraram.
É partir sem temor contra a montanha Cingidos de quimera e d'irreal; Brandir a espada fulva e medieval, A cada hora acastelando em Espanha.
É suscitar côres endoidecidas, Ser garra imperial enclavinhada, E numa extrema-unção d'alma ampliada, Viajar outros sentidos, outras vidas.
Ser coluna de fumo, astro perdido, Forçar os turbilhões aladamente, Ser ramo de palmeira, água nascente E arco de ouro e chama distendido...
Asa longinqua a sacudir loucura, Nuvem precoce de subtil vapor, Ânsia revolta de mistério e olor, Sombra, vertigem, ascensão - Altura!
E eu dou-me todo neste fim de tarde À espira aérea que me eleva aos cumes. Doido de esfinges o horizonte arde, Mas fico ileso entre clarões e gumes!...
Miragem rôxa de nimbado encanto - Sinto os meus olhos a volver-se em espaço! Alastro, venço, chego e ultrapasso; Sou labirinto, sou licorne e acanto.
Sei a distância, compreendo o Ar; Sou chuva de ouro e sou espasmo de luz; Sou taça de cristal lançada ao mar, Diadema e timbre, elmo real e cruz...
O bando das quimeras longe assoma... Que apoteose imensa pelos céus! A côr já não é côr - é som e aroma! Vem-me saudades de ter sido Deus...
Ao triunfo maior, avante pois! O meu destino é outro - é alto e é raro. Únicamente custa muito caro: A tristeza de nunca sermos dois...
Mário de Sá-Carneiro, in 'Dispersão' | |
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