| | JOSÉ RÉGIO - O FILÓSOFO | |
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Anarca
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| Assunto: JOSÉ RÉGIO - O FILÓSOFO Ter Jan 26, 2010 7:07 pm | |
| Escritor português, natural de Vila do Conde, onde viveu até completar o quinto ano do liceu, após o que continuou a estudar no Porto. José Régio, pseudónimo de José Maria dos Reis Pereira, publicou, em Vila do Conde, nos jornais O Democrático e República, os seus primeiros versos. Aos 18 anos, foi para Coimbra, onde se licenciou em Filologia Românica (1925), com a tese «As Correntes e As Individualidades na Moderna Poesia Portuguesa». Esta foi pouco apreciada, sobretudo pela valorização que nela fazia de dois poetas então quase desconhecidos, Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa. Esta tese, refundida, veio a ser publicada com o título Pequena História da Moderna Poesia Portuguesa (1941).
Com Branquinho da Fonseca e João Gaspar Simões fundou, em 1927, a revista Presença (cujo primeiro número saiu a 10 de Março, vindo a publicar-se, embora sem regularidade, durante treze anos), que marcou o segundo modernismo português e de que Régio foi o principal impulsionador e ideólogo. Para além da sua colaboração assídua nesta revista, deixou também textos dispersos por publicações como a Seara Nova, Ler, O Comércio do Porto e o Diário de Notícias. No mesmo ano iniciou a sua vida profissional como professor de liceu, primeiro no Porto (apenas alguns meses) e, a partir de 1928, em Portalegre, onde permaneceu mais de trinta anos. Só em 1967 regressou a Vila do Conde, onde morreu dois anos mais tarde.
Participou activamente na vida pública, fazendo parte da comissão concelhia de Vila do Conde do Movimento de Unidade Democrática (MUD), apoiando o general Nórton de Matos na sua candidatura à Presidência da República e, mais tarde, a candidatura do general Humberto Delgado. Integrou ainda a Comissão Eleitoral de Unidade Democrática (CEUD), nas eleições de 1969.
Como escritor, José Régio dedicou-se ao romance, ao teatro, à poesia e ao ensaio. Centrais, na sua obra, são as problemáticas do conflito entre Deus e o Homem, o indivíduo e a sociedade, numa análise crítica das relações humanas e da solidão, do dilaceramento interior perante a relação entre o espírito e a carne e a ânsia humana do absoluto. Levando a cabo uma auto-análise e uma introspecção constantes, a sua obra é fortemente marcada pelo tom psicologista e, simultaneamente, por um misticismo inquieto que se revela em motivos como o angelismo ou a redenção no sofrimento. A sua poesia, de grande tensão lírica e dramática, apresenta-se frequentemente como uma espécie de diálogo entre níveis diferentes da consciência. A mesma intensidade psicológica, aliada a um sentido de crítica social, tem lugar na ficção. Como ensaísta, dedicou-se ao estudo de autores como Camões, Raul Brandão e Florbela Espanca. Na revista Presença, assinou um editorial («Literatura Viva») que constituiu uma espécie de manifesto dos autores ligados a este órgão do segundo modernismo português, defendendo a necessidade de uma arte viva, e não livresca, que reflectisse a profundidade e a originalidade virgens dos seus autores.
Estreou-se, em 1926, com o volume de poesia Poemas de Deus e do Diabo, a que se seguiram Biografia (1929, poesia), Jogo da Cabra-Cega (1934, primeiro romance), As Encruzilhadas de Deus (1936, livro de poesia e tido como a sua obra-prima), Primeiro Volume de Teatro: Jacob e o Anjo e Três Máscaras (1940), Davam Grandes Passeios aos Domingos (novela publicada em 1941 e incluída, em 1946, em Histórias de Mulheres), Fado (1941, livro de poesia com desenhos do irmão Júlio, principal ilustrador da sua obra), O Príncipe Com Orelhas de Burro (1942, romance), A Velha Casa (obra inacabada, mas de que chegaram a sair os volumes Uma Gota de Sangue, em 1945, As Raízes do Futuro, em 1947, Os Avisos do Destino, em 1953, As Monstruosidades Vulgares, em 1960, e As Vidas São Vidas, em 1966), Mas Deus É Grande, (1945, poesia), Benilde ou a Virgem-Mãe (1947, peça de teatro adaptada ao cinema, em 1974, por Manuel de Oliveira), El-Rei Sebastião (1949, «poema espectacular em 3 actos»), A Salvação do Mundo (1954, tragicomédia em três actos), A Chaga do Lado (1954, sátiras e epigramas), Três Peças em Um Acto: Três Máscaras, O Meu Caso e Mário ou Eu Próprio-O Outro (1957), O Filho do Homem (1961), Há Mais Mundos (1962, livro de contos, pelo qual recebeu o Grande Prémio de Novelística da Sociedade Portuguesa de Escritores), Cântico Suspenso (1968, poesia) e, a título póstumo, Música Ligeira (1970, poesia), Colheita da Tarde (1971, poesia) e Confissão Dum Homem Religioso (1971, obra de reflexão). Na sua obra ensaística, destacam-se ainda os Três Ensaios Sobre Arte (1967), que reúnem textos publicados anteriormente, e Páginas de Doutrina e Crítica da Presença, recolha feita por Alberto Serpa, relativamente à colaboração de Régio na Presença (1977).
Partilhou ainda, com o irmão Júlio, o gosto pelas artes plásticas, tendo chegado a desenhar uma capa para a Presença e feito os oito desenhos que, a partir da 5ª edição, ilustram os Poemas de Deus e do Diabo. É considerado, por alguns, como um dos vultos mais significativos da moderna literatura portuguesa. Recebeu, em 1961, o prémio Diário de Notícias e, postumamente, em 1970, o Prémio Nacional de Poesia, pelo conjunto da sua obra poética. As suas casas de Vila do Conde e de Portalegre são hoje museus | |
| | | Anarca
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| Assunto: Re: JOSÉ RÉGIO - O FILÓSOFO Ter Jan 26, 2010 7:10 pm | |
| Cântico Negro
"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces Estendendo-me os braços, e seguros De que seria bom que eu os ouvisse Quando me dizem: "vem por aqui!" Eu olho-os com olhos lassos, (Há, nos olhos meus, ironias e cansaços) E cruzo os braços, E nunca vou por ali...
A minha glória é esta: Criar desumanidade! Não acompanhar ninguém. - Que eu vivo com o mesmo sem-vontade Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos, Redemoinhar aos ventos, Como farrapos, arrastar os pés sangrentos, A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi Só para desflorar florestas virgens, E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada! O mais que faço não vale nada.
Como, pois sereis vós Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem Para eu derrubar os meus obstáculos?... Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós, E vós amais o que é fácil! Eu amo o Longe e a Miragem, Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas, Tendes jardins, tendes canteiros, Tendes pátria, tendes tectos, E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios... Eu tenho a minha Loucura ! Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura, E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém. Todos tiveram pai, todos tiveram mãe; Mas eu, que nunca principio nem acabo, Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções! Ninguém me peça definições! Ninguém me diga: "vem por aqui"! A minha vida é um vendaval que se soltou. É uma onda que se alevantou. É um átomo a mais que se animou... Não sei por onde vou, Não sei para onde vou - Sei que não vou por aí!
(José Régio) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: JOSÉ RÉGIO - O FILÓSOFO Qua Jan 27, 2010 1:09 pm | |
| Narciso
Dentro de mim me quis eu ver. Tremia, Dobrado em dois sobre o meu próprio poço... Ah, que terrível face e que arcabouço Este meu corpo lânguido escondia!
Ó boca tumular, cerrada e fria, Cujo silêncio esfíngico bem ouço! Ó lindos olhos sôfregos, de moço, Numa fronte a suar melancolia!
Assim me desejei nestas imagens. Meus poemas requintados e selvagens, O meu Desejo os sulca de vermelho:
Que eu vivo à espera dessa noite estranha, Noite de amor em que me goze e tenha, ...Lá no fundo do poço em que me espelho!
José Régio, in 'Biografia' | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: JOSÉ RÉGIO - O FILÓSOFO Qui Jan 28, 2010 1:15 pm | |
| Ignoto Deo
Desisti de saber qual é o Teu nome, Se tens ou não tens nome que Te demos, Ou que rosto é que toma, se algum tome, Teu sopro tão além de quanto vemos.
Desisti de Te amar, por mais que a fome Do Teu amor nos seja o mais que temos, E empenhei-me em domar, nem que os não dome, Meus, por Ti, passionais e vãos extremos.
Chamar-Te amante ou pai... grotesco engano Que por demais tresanda a gosto humano! Grotesco engano o dar-te forma! E enfim,
Desisti de Te achar no quer que seja, De Te dar nome, rosto, culto, ou igreja... – Tu é que não desistirás de mim!
José Régio, in 'Biografia' | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: JOSÉ RÉGIO - O FILÓSOFO Sex Jan 29, 2010 7:08 pm | |
| Ícaro
A minha Dor, vesti-a de brocado, Fi-la cantar um choro em melopeia, Ergui-lhe um trono de oiro imaculado, Ajoelhei de mãos postas e adorei-a.
Por longo tempo, assim fiquei prostrado, Moendo os joelhos sobre lodo e areia. E as multidões desceram do povoado, Que a minha dor cantava de sereia...
Depois, ruflaram alto asas de agoiro! Um silêncio gelou em derredor... E eu levantei a face, a tremer todo:
Jesus! ruíra em cinza o trono de oiro! E, misérrima e nua, a minha Dor Ajoelhara a meu lado sobre o lodo.
José Régio, in 'Poemas de Deus e do Diabo' | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: JOSÉ RÉGIO - O FILÓSOFO Ter Fev 02, 2010 3:03 pm | |
| Quando eu nasci
Quando eu nasci, ficou tudo como estava, Nem homens cortaram veias, nem o Sol escureceu, nem houve Estrelas a mais... Somente, esquecida das dores, a minha Mãe sorriu e agradeceu.
Quando eu nasci, não houve nada de novo senão eu.
As nuvens não se espantaram, não enlouqueceu ninguém...
P'ra que o dia fosse enorme, bastava toda a ternura que olhava nos olhos de minha Mãe...
(José Régio)
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| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: JOSÉ RÉGIO - O FILÓSOFO Qua Fev 03, 2010 2:47 pm | |
| Fado português
O Fado nasceu um dia, quando o vento mal bulia e o céu o mar prolongava, na amurada dum veleiro, no peito dum marinheiro que, estando triste, cantava, que, estando triste, cantava.
Ai, que lindeza tamanha, meu chão, meu monte, meu vale, de folhas, flores, frutas de oiro, vê se vês terras de Espanha, areias de Portugal, olhar ceguinho de choro.
Na boca dum marinheiro do frágil barco veleiro, morrendo a canção magoada, diz o pungir dos desejos do lábio a queimar de beijos que beija o ar, e mais nada, que beija o ar, e mais nada.
Mãe, adeus. Adeus, Maria. Guarda bem no teu sentido que aqui te faço uma jura: que ou te levo à sacristia, ou foi Deus que foi servido dar-me no mar sepultura.
Ora eis que embora outro dia, quando o vento nem bulia e o céu o mar prolongava, à proa de outro veleiro velava outro marinheiro que, estando triste, cantava, que, estando triste, cantava.
(José Régio) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: JOSÉ RÉGIO - O FILÓSOFO Sex Fev 05, 2010 2:44 pm | |
| Adão e Eva
Olhámo-nos um dia, E cada um de nós sonhou que achara O par que a alma e a carne lhe pedia.
- E cada um de nós sonhou que o achara...
E entre nós dois Se deu, depois, o caso da maçã e da serpente, ...Se deu, e se dará continuamente:
Na palma da tua mão, Me ofertaste, e eu mordi, o fruto do pecado.
- O meu nome é Adão...
E em que furor sagrado Os nossos corpos nus e desejosos Como serpentes brancas se enroscaram, Tentando ser um só!
Ó beijos angustiados e raivosos Que as nossas pobres bocas se atiraram, Sobre um leito de terra, cinza e pó!
Ó abraços que os braços apertaram, Dedos que se misturaram!
Ó ânsia que sofreste, ó ânsia que sofri, Sede que nada mata, ânsia sem fim! - Tu de entrar em mim, Eu de entrar em ti.
Assim toda te deste, E assim todo me dei:
Sobre o teu longo corpo agonizante, Meu inferno celeste, Cem vezes morri, prostrado... Cem vezes ressuscitei Para uma dor mais vibrante E um prazer mais torturado.
E enquanto as nossas bocas se esmagavam, E as doces curvas do teu corpo se ajustavam Às linhas fortes do meu, Os nossos olhos muito perto, imensos No desespero desse abraço mudo, Confessaram-me tudo! ...Enquanto nós pairávamos, suspensos Entre a terra e o céu.
Assim as almas se entregaram, Como os corpos se tinham entregado. Assim duas metades se amoldaram Ante as barbas, que tremeram, Do velho Pai desprezado!
E assim Adão e Eva se conheceram:
Tu conheceste a força dos meus pulsos, A miséria do meu ser, Os recantos da minha humanidade, A grandeza do meu amor cruel, Os veios de oiro que o meu barro trouxe...
Eu os teus nervos convulsos, O teu poder, A tua fragilidade, Os sinais da tua pele, O gosto do teu sangue doce...
Depois...
Depois o quê, amor? Depois, mais nada, - Que Jeová não sabe perdoar!
O Arcanjo entre nós dois abrira a longa espada...
Continuámos a ser dois, E nunca nos pudemos penetrar!
(José Régio) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: JOSÉ RÉGIO - O FILÓSOFO Seg Fev 08, 2010 2:22 pm | |
| Onomatopeia
Menino franzino, Quase pequenino, Pequenino, triste, Neste mundo só...,
Menino, desiste De que tenham dó!
Desiste, menino, Que o mundo é cretino... Deixa o teu violino, Toca o sol-e-dó.
Cada teu suspiro Cai ao chão no pó... Canta o tiro-liro Tiro-liro-ló.
Deixa o teu violino, Que não te é destino. Desiste, menino, De que tenham dó!
Menino franzino, Triste e pequenino, Pequenino, triste, Neste mundo só...,
Menino, desiste! Toca o sol-e-dó. Canta o tiro-liro, repipiro-piro, Canta o repipiro, tiro-liro-ló.
(José Régio) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: JOSÉ RÉGIO - O FILÓSOFO Ter Fev 09, 2010 1:57 pm | |
| Fantasia sobre um velho tema
Mora-me um poeta Que tento esconder, A ver Se poderei ser Como toda a gente.
Abri os meus alçapões, E no último desvão O fechei a pão e água, Com grilhões, E uma corrente... (... a ver se poderei ser Como toda a gente).
Depois, saí para a rua, Todo aprumado, Escovado, Dado a ferro, Satisfeito: Porque em verdade, julgava Que a multidão que girava Pensava De mim Assim:
- "Ali vai um homem Tão decentemente Que, naturalmente, Nada deve ter Que nos esconder..."
Delirantemente, De mim para mim, Eu pensava assim:
- " Ser como essa gente! Ser bem menos gente! Ser mais toda-a-gente Que toda essa gente!"
Sim, Raivosamente, Eu pensava assim.
... Tanto mais raivosamente Quanto, dos longes de mim, Do fim Do derradeiro alçapão, O Poeta emparedado, Esfaimado, Encadeado, Cantava a sua prisão:
- " Se aqui me fecharam, Foi porque não posso Debulhar o osso Que me arremessaram...
Foi porque os desperto, De noite e de dia, Com a chama fria Do meu gládio aberto...
Foi porque a pobreza Que fiz meu tesoiro Tem muito mais oiro Que a sua riqueza...
Foi porque horas mortas, Indo no caminho, Lhes bati às portas, Mas segui sozinho..."
Eu pensava:
- " Sim, realmente, Se te fechei, foi a ver Se poderei ser Como toda a gente..."
E baixinho, Recolhido sobre mim Como um bichinho-de-conta, Eu cantava-lhe também, Recolhido sobre mim, Cantigas de adormentar: Cousas de pai, ou de mãe, Que cantam para embalar...
Assim:
- "Durma um soninho comprido No seu bercinho deitado, Que o papão foi enxotado, E eu não deixo o meu querido...
Durma um soninho alongado, No seu bercinho estendido, Que eu não tiro do sentido Velar o meu adorado..."
E assim, com tudo isto ao peito, - Um doido e seu alçapão - Eu seguia satisfeito: Porque em verdade, julgava Que a multidão que girava Pensava De mim Assim:
- "Ali vai um homem Tão decentemente Que, naturalmente, Nada deve ter Que nos esconder..."
Como era que, de repente, Nos olhos de quem passava (Um qualquer) Imaginava Ver debruçar-se a acusar-me Um colosso..., Um poeta inofensivo Com ferros nos tornozelos, Nos pulsos, E no pescoço?
Ai, campainhas de alarme Sob dedos de outro mundo...!
E nem sei como Transtornado até ao fundo Dos meus alçapões recônditos, Melodramaticamente, Eu avançava De braços todos abertos Para o qualquer que passava.
Então, Diante de mim, agora, Qualquer, e não sem razão, (Qualquer grosseirão) Parava, ria, Dizia Que eu era doido varrido...
E, corrido, Eu desatava a correr.
A multidão Detinha-se para ver Este senhor bem vestido, Com bom ar e belos modos, A fugir, como um perdido, Ante o pasmo dos mais todos!
Sarcasta, Bem lá do fundo Do alçapão derradeiro, O meu Cativo cantava O timbre da sua casta:
- "Sou como um grito de alarme Sobre as tuas sonolências. Preencho as tuas ausências Com a presença de Deus...
O som dos teus escarcéus, Redu-lo a silêncio e a espanto O murmúrio do meu canto Nos teus ouvidos impuros...
Quero-te! e não são teus muros Que hão-de impedir que te enlace, E que te queime a boca e a face Com meu ósculo de fogo...
Que trapaças de que jogo Inventarás por vencer-me, Se te rojas como um verme Sem as asas que te hei sido?
E é de tal modo perdido O afã de me combater, Que é teu supremo vencer Não vencer - mas ser vencido..."
... Cantava. Mas eu, aos poucos, Subjugava Meus nervos loucos: Retomava, Da minha lista de cor, Qualquer pomposa atitude... Por exemplo: a de senhor Fundador, Ou benfeitor, De associações de virtude.
E seguia Com decência e autoridade, Enquanto com desespero, Com crueldade, Com ódio, Com soluços de paixão, Gritava lá para dentro Do derradeiro alçapão:
- "Não!..., Não penses Que te pode ouvir alguém! Ouço-te eu; e mais ninguém! Mas eu não te soltarei, Nem deixarei Que parem à tua porta. Hei-de ter-te emparedado, Carregado De correntes; E, por uma noite morta, Hei-de entrar, como um ladrão, E hei-de te cravar os dentes No lugar do coração; E hei-de te arrancar a língua; E hei-de te queimar os olhos; E hás-de ficar cego e mudo; E assim, À míngua De tudo, Te hei-de deixar A agonizar por três dias... Então, Hei-de compor elegias À tua morte: Elegias académicas, Sonoras, Metafóricas, Retóricas, Feitas com todo o recorte, Com toda a morfologia, Com toda a fonologia, Com toda a sabedoria De versos caindo iguais, Como um relógio a dar ais À hora do meio-dia! Depois, hei-de conservar O teu coração escuro Triturado Por meus dentes, Hei-de o conservar, pintado, Retocado, Envernizado, Num frasco de cristal puro...
Para o mostrar às visitas, Aos amigos e aos parentes."
Assim falando Para dentro Do subterrâneo nefando, Ia andando Com aspecto satisfeito, E direito, Bem seguro, Sobretudo, consciente De estar mesmo a ser, agora, A parte de fora (A cal do muro) De toda a gente...
Assim entro em várias casas, Através de várias ruas, Parando ante várias montras, Cumprimentando Para um lado, para outro...
Até ficar Numa qualquer sala Onde estão sentados Homens e mulheres Com um ar de embalsamados.
Criados Vêm e vão Com bandejas Sobre a mão.
Paira, como nas igrejas, Um fumo de hipocrisia...
Enquanto A um canto, Com funda neurastenia, Um piano faz ão-ão, Faz ão-ão a toda a gente, Como um pobre cão doente.
Logo, Então, Qualquer menina Marguerite Me implora que lhes recite A última produção.
Recuso-me, Ela insiste, Vou para o meio da sala, Tudo se cala, Sinto-me triste, Falta-me a fala, Falta-me a respiração, E a suar de angústia, rouco, Debuxando no ar gestos de louco, Arranco, num grande esforço, Estas palavras ao Outro...
Palavras De todo o meu coração:
- "No silêncio total, contemplo-te. Morreu A já póstuma luz dos astros mortos, no céu cavo. Chegou a nossa hora! A realidade és tu e eu. Contemplo-te, senhor!, eu, teu.
(José Régio) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: JOSÉ RÉGIO - O FILÓSOFO Qua Fev 10, 2010 5:40 pm | |
| Testamento do Poeta
Todo esse vosso esforço é vão, amigos: Não sou dos que se aceita... a não ser mortos. Demais, já desisti de quaisquer portos; Não peço a vossa esmola de mendigos.
O mesmo vos direi, sonhos antigos De amor! olhos nos meus outrora absortos! Corpos já hoje inchados, velhos, tortos, Que fostes o melhor dos meus pascigos!
E o mesmo digo a tudo e a todos, - hoje Que tudo e todos vejo reduzidos, E ao meu próprio Deus nego, e o ar me foge.
Para reaver, porém, todo o Universo, E amar! e crer! e achar meus mil sentidos!.... Basta-me o gesto de contar um verso.
(José Régio) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: JOSÉ RÉGIO - O FILÓSOFO Sex Fev 12, 2010 2:08 pm | |
| Sabedoria
Desde que tudo me cansa, Comecei eu a viver. Comecei a viver sem esperança... E venha a morte quando Deus quiser.
Dantes, ou muito ou pouco, Sempre esperara: Às vezes, tanto, que o meu sonho louco Voava das estrelas à mais rara; Outras, tão pouco, Que ninguém mais com tal se conformara.
Hoje, é que nada espero. Para quê, esperar? Sei que já nada é meu senão se o não tiver; Se quero, é só enquanto apenas quero; Só de longe, e secreto, é que inda posso amar... E venha a morte quando Deus quiser.
Mas, com isto, que têm as estrelas? Continuam brilhando, altas e belas.
(José Régio) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: JOSÉ RÉGIO - O FILÓSOFO Seg Mar 01, 2010 6:39 pm | |
| Epitáfio para um poeta
As asas não lhe cabem no caixão! A farpela de luto não condiz Com seu ar grave, mas, enfim, feliz; A gravata e o calçado também não. Ponham-no fora e dispam-lhe a farpela! Descalcem-lhe os sapatos de verniz! Nao vêem que ele, nu, faz mais figura, Como uma pedra, ou uma estrela? Pois atirem-no assim à terra dura, Ser-lhe-á conforto: Deixem-no respirar ao menos morto!
(José Régio) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: JOSÉ RÉGIO - O FILÓSOFO Qui Mar 04, 2010 7:03 pm | |
| Epitáfio para uma velha donzela
Não conheceu do amor as vãs complicações Nem o prazer e as suas decepções. Por isso é que os fiéis das sensações Tiveram sua vida por frustrada. Viveu de leve, humilde e afável, encerrada No mistério sem mito em que morreu. Da sua vida mais intensa, nada Chegou ao mundo, que não era seu.
Sobre esta laje fria, Por memória Dessa ignorada história Inscreveu esta coisa fugidia Aquele de quem foi secretamente amada.
(José Régio) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: JOSÉ RÉGIO - O FILÓSOFO Sex Mar 05, 2010 5:09 pm | |
| Metafísica
De cada vez que nos teus braços Por uns momentos morro, Nos abismos de mim o meu amor pede socorro Como se à força alguém lhe desatasse os laços.
De cada vez apreendo Que fica em muito pouco, ou nada, aquele tanto Que o querer ter promete, enquanto Se não tendo.
Desejar é que é ter! mas não nos basta. Sonhar é que é possuir sem tédio nem cansaços. Sei-o, mas só já morto nos teus braços. Sofre a carne de ter, ou de ser casta.
Sobre o desejo farto, a alma se debruça, Contempla o nada a que o fartá-lo aponta. E atrás do mesmo nada eis que ela mesma, tonta, Vai, se a carne reacende a escaramuça.
Entrar num corpo até onde se oculte O para Lá do corpo - eis o supremo sonho. De que desejos o componho, Se ei-lo se descompõe quando o desejo avulte?
Sôfrega, a carne pede carne. Saciada, Pede, ela própria, o que jamais sacia. Para de novo se inflamar, é um dia. Para de novo desgostar, um nada.
Ai, como não te amar e não te aborrecer, Carne de leite e rosas, - terra inglória Do longo prélio-entendimento sem vitória Que é carne e alma, ter-não ter?
(José Régio) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: JOSÉ RÉGIO - O FILÓSOFO Seg Mar 08, 2010 7:25 pm | |
| Canção de primavera
Eu, dar flor, já não dou. Mas vós, ó flores, Pois que Maio chegou, Revesti-o de clâmides de cores! Que eu, dar, flor, já não dou.
Eu, cantar, já não canto. Mas vós, aves, Acordai desse azul, calado há tanto, As infinitas naves! Que eu, cantar, já não canto.
Eu, invernos e outonos recalcados Regelaram meu ser neste arrepio... Aquece tu, ó sol, jardins e prados! Que eu, é de mim o frio.
Eu, Maio, já não tenho. Mas tu, Maio, Vem com tua paixão, Prostrar a terra em cálido desmaio! Que eu, ter Maio, já não.
Que eu, dar flor, já não dou; cantar, não canto; Ter sol, não tenho; e amar... Mas, se não amo, Como é que, Maio em flor, te chamo tanto, E não por mim assim te chamo?
(José Régio) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: JOSÉ RÉGIO - O FILÓSOFO Ter Mar 09, 2010 6:46 pm | |
| O amor e a morte
Canção cruel Corpo de ânsia. Eu sonhei que te prostava, E te enleava Aos meus músculos!
Olhos de êxtase, Eu sonhei que em vós bebia Melancolia De há séculos!
Boca sôfrega, Rosa brava Eu sonhei que te esfolhava Petala a pétala!
Seios rígidos, Eu sonhei que vos mordia Até que sentia Vómitos!
Ventre de mármore, Eu sonhei que te sugava, E esgotava Como a um cálice!
Pernas de estátua, Eu sonhei que vos abria, Na fantasia, Como pórticos!
Pés de sílfide, Eu sonhei que vos queimava Na lava Destas mãos ávidas!
Corpo de ânsia, Flor de volúpia sem lei! Não te apagues, sonho! mata-me Como eu sonhei.
(José Régio) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: JOSÉ RÉGIO - O FILÓSOFO Seg Mar 15, 2010 8:03 pm | |
| Adão e Eva
Olhámo-nos um dia, E cada um de nós sonhou que achara O par que a alma e a cara lhe pedia.
- E cada um de nós sonhou que o achara...
E entre nós dois Se deu, depois, o caso da maçã e da serpente, ... Se deu, e se dará continuamente:
Na palma da tua mão, Me ofertaste, e eu mordi, o fruto do pecado.
- Meu nome é Adão...
E em que furor sagrado Os nossos corpos nus e desejosos Como serpentes brancas se enroscaram, Tentando ser um só!
Ó beijos angustiados e raivosos Que as nossas pobres bocas se atiraram Sobre um leito de terra, cinza e pó!
Ó abraços que os braços apertaram, Dedos que se misturaram!
Ó ânsia que sofreste, ó ânsia que sofri, Sede que nada mata, ânsia sem fim! - Tu de entrar em mim, Eu de entrar em ti.
Assim toda te deste, E assim todo me dei:
Sobre o teu longo corpo agonizante, Meu inferno celeste, Cem vezes morri, prostrado... Cem vezes ressuscitei Para uma dor mais vibrante E um prazer mais torturado.
E enquanto as nossas bocas se esmagavam, E as doces curvas do teu corpo se ajustavam Às linhas fortes do meu, Os nossos olhos muito perto, imensos, No desespero desse abraço mudo, Confessaram-se tudo! ... Enquanto nós pairávamos, suspensos Entre a terra e o céu.
Assim as almas se entregaram, Como os corpos se tinham entregado, Assim duas metades se amoldaram Ante as barbas, que tremeram, Do velho Pai desprezado!
E assim Eva e Adão se conheceram:
Tu conheceste a força dos meus pulsos, A miséria do meu ser, Os recantos da minha humanidade, A grandeza do meu amor cruel, Os veios de oiro que o meu barro trouxe...
Eu, os teus nervos convulsos, O teu poder, A tua fragilidade Os sinais da tua pele, O gosto do teu sangue doce...
Depois...
Depois o quê, amor? Depois, mais nada, - Que Jeová não sabe perdoar!
O Arcanjo entre nós dois abrira a longa espada...
Continuamos a ser dois, E nunca nos pudemos penetrar!
(José Régio) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: JOSÉ RÉGIO - O FILÓSOFO Ter Mar 16, 2010 5:56 pm | |
| Onomatopeia
Menino franzino, Quase pequenino, Pequenino, triste, Neste mundo só...,
Menino, desiste De que tenham dó!
Desiste, menino, Que o mundo é cretino... Deixa o teu violino, Toca o sol-e-dó.
Cada teu suspiro Cai ao chão no pó... Canta o tiro-liro Tiro-liro-ló.
Deixa o teu violino, Que não te é destino. Desiste, menino, De que tenham dó!
Menino franzino, Triste e pequenino, Pequenino, triste, Neste mundo só...,
Menino, desiste! Toca o sol-e-dó. Canta o tiro-liro, repipiro-piro, Canta o repipiro, tiro-liro-ló.
(José Régio) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: JOSÉ RÉGIO - O FILÓSOFO Qui Mar 18, 2010 5:48 pm | |
| Fantasia sobre um velho tema
Mora-me um poeta Que tento esconder, A ver Se poderei ser Como toda a gente.
Abri os meus alçapões, E no último desvão O fechei a pão e água, Com grilhões, E uma corrente... (... a ver se poderei ser Como toda a gente).
Depois, saí para a rua, Todo aprumado, Escovado, Dado a ferro, Satisfeito: Porque em verdade, julgava Que a multidão que girava Pensava De mim Assim:
- "Ali vai um homem Tão decentemente Que, naturalmente, Nada deve ter Que nos esconder..."
Delirantemente, De mim para mim, Eu pensava assim:
- " Ser como essa gente! Ser bem menos gente! Ser mais toda-a-gente Que toda essa gente!"
Sim, Raivosamente, Eu pensava assim.
... Tanto mais raivosamente Quanto, dos longes de mim, Do fim Do derradeiro alçapão, O Poeta emparedado, Esfaimado, Encadeado, Cantava a sua prisão:
- " Se aqui me fecharam, Foi porque não posso Debulhar o osso Que me arremessaram...
Foi porque os desperto, De noite e de dia, Com a chama fria Do meu gládio aberto...
Foi porque a pobreza Que fiz meu tesoiro Tem muito mais oiro Que a sua riqueza...
Foi porque horas mortas, Indo no caminho, Lhes bati às portas, Mas segui sozinho..."
Eu pensava:
- " Sim, realmente, Se te fechei, foi a ver Se poderei ser Como toda a gente..."
E baixinho, Recolhido sobre mim Como um bichinho-de-conta, Eu cantava-lhe também, Recolhido sobre mim, Cantigas de adormentar: Cousas de pai, ou de mãe, Que cantam para embalar...
Assim:
- "Durma um soninho comprido No seu bercinho deitado, Que o papão foi enxotado, E eu não deixo o meu querido...
Durma um soninho alongado, No seu bercinho estendido, Que eu não tiro do sentido Velar o meu adorado..."
E assim, com tudo isto ao peito, - Um doido e seu alçapão - Eu seguia satisfeito: Porque em verdade, julgava Que a multidão que girava Pensava De mim Assim:
- "Ali vai um homem Tão decentemente Que, naturalmente, Nada deve ter Que nos esconder..."
Como era que, de repente, Nos olhos de quem passava (Um qualquer) Imaginava Ver debruçar-se a acusar-me Um colosso..., Um poeta inofensivo Com ferros nos tornozelos, Nos pulsos, E no pescoço?
Ai, campainhas de alarme Sob dedos de outro mundo...!
E nem sei como Transtornado até ao fundo Dos meus alçapões recônditos, Melodramaticamente, Eu avançava De braços todos abertos Para o qualquer que passava.
Então, Diante de mim, agora, Qualquer, e não sem razão, (Qualquer grosseirão) Parava, ria, Dizia Que eu era doido varrido...
E, corrido, Eu desatava a correr.
A multidão Detinha-se para ver Este senhor bem vestido, Com bom ar e belos modos, A fugir, como um perdido, Ante o pasmo dos mais todos!
Sarcasta, Bem lá do fundo Do alçapão derradeiro, O meu Cativo cantava O timbre da sua casta:
- "Sou como um grito de alarme Sobre as tuas sonolências. Preencho as tuas ausências Com a presença de Deus...
O som dos teus escarcéus, Redu-lo a silêncio e a espanto O murmúrio do meu canto Nos teus ouvidos impuros...
Quero-te! e não são teus muros Que hão-de impedir que te enlace, E que te queime a boca e a face Com meu ósculo de fogo...
Que trapaças de que jogo Inventarás por vencer-me, Se te rojas como um verme Sem as asas que te hei sido?
E é de tal modo perdido O afã de me combater, Que é teu supremo vencer Não vencer - mas ser vencido..."
... Cantava. Mas eu, aos poucos, Subjugava Meus nervos loucos: Retomava, Da minha lista de cor, Qualquer pomposa atitude... Por exemplo: a de senhor Fundador, Ou benfeitor, De associações de virtude.
E seguia Com decência e autoridade, Enquanto com desespero, Com crueldade, Com ódio, Com soluços de paixão, Gritava lá para dentro Do derradeiro alçapão:
- "Não!..., Não penses Que te pode ouvir alguém! Ouço-te eu; e mais ninguém! Mas eu não te soltarei, Nem deixarei Que parem à tua porta. Hei-de ter-te emparedado, Carregado De correntes; E, por uma noite morta, Hei-de entrar, como um ladrão, E hei-de te cravar os dentes No lugar do coração; E hei-de te arrancar a língua; E hei-de te queimar os olhos; E hás-de ficar cego e mudo; E assim, À míngua De tudo, Te hei-de deixar A agonizar por três dias... Então, Hei-de compor elegias À tua morte: Elegias académicas, Sonoras, Metafóricas, Retóricas, Feitas com todo o recorte, Com toda a morfologia, Com toda a fonologia, Com toda a sabedoria De versos caindo iguais, Como um relógio a dar ais À hora do meio-dia! Depois, hei-de conservar O teu coração escuro Triturado Por meus dentes, Hei-de o conservar, pintado, Retocado, Envernizado, Num frasco de cristal puro...
Para o mostrar às visitas, Aos amigos e aos parentes."
Assim falando Para dentro Do subterrâneo nefando, Ia andando Com aspecto satisfeito, E direito, Bem seguro, Sobretudo, consciente De estar mesmo a ser, agora, A parte de fora (A cal do muro) De toda a gente...
Assim entro em várias casas, Através de várias ruas, Parando ante várias montras, Cumprimentando Para um lado, para outro...
Até ficar Numa qualquer sala Onde estão sentados Homens e mulheres Com um ar de embalsamados.
Criados Vêm e vão Com bandejas Sobre a mão.
Paira, como nas igrejas, Um fumo de hipocrisia...
Enquanto A um canto, Com funda neurastenia, Um piano faz ão-ão, Faz ão-ão a toda a gente, Como um pobre cão doente.
Logo, Então, Qualquer menina Marguerite Me implora que lhes recite A última produção.
Recuso-me, Ela insiste, Vou para o meio da sala, Tudo se cala, Sinto-me triste, Falta-me a fala, Falta-me a respiração, E a suar de angústia, rouco, Debuxando no ar gestos de louco, Arranco, num grande esforço, Estas palavras ao Outro...
Palavras De todo o meu coração:
- "No silêncio total, contemplo-te. Morreu A já póstuma luz dos astros mortos, no céu cavo. Chegou a nossa hora! A realidade és tu e eu. Contemplo-te, senhor!, eu, teu
(José Régio) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: JOSÉ RÉGIO - O FILÓSOFO Seg Mar 22, 2010 1:49 pm | |
| Testamento do Poeta
Todo esse vosso esforço é vão, amigos: Não sou dos que se aceita... a não ser mortos. Demais, já desisti de quaisquer portos; Não peço a vossa esmola de mendigos.
O mesmo vos direi, sonhos antigos De amor! olhos nos meus outrora absortos! Corpos já hoje inchados, velhos, tortos, Que fostes o melhor dos meus pascigos!
E o mesmo digo a tudo e a todos, - hoje Que tudo e todos vejo reduzidos, E ao meu próprio Deus nego, e o ar me foge.
Para reaver, porém, todo o Universo, E amar! e crer! e achar meus mil sentidos!.... Basta-me o gesto de contar um verso.
(José Régio) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: JOSÉ RÉGIO - O FILÓSOFO Qua Mar 24, 2010 1:16 pm | |
| Sabedoria
Desde que tudo me cansa, Comecei eu a viver. Comecei a viver sem esperança... E venha a morte quando Deus quiser.
Dantes, ou muito ou pouco, Sempre esperara: Às vezes, tanto, que o meu sonho louco Voava das estrelas à mais rara; Outras, tão pouco, Que ninguém mais com tal se conformara.
Hoje, é que nada espero. Para quê, esperar? Sei que já nada é meu senão se o não tiver; Se quero, é só enquanto apenas quero; Só de longe, e secreto, é que inda posso amar... E venha a morte quando Deus quiser.
Mas, com isto, que têm as estrelas? Continuam brilhando, altas e belas.
(José Régio) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: JOSÉ RÉGIO - O FILÓSOFO Qui Mar 25, 2010 2:23 pm | |
| Epitáfio para um poeta
As asas não lhe cabem no caixão! A farpela de luto não condiz Com seu ar grave, mas, enfim, feliz; A gravata e o calçado também não. Ponham-no fora e dispam-lhe a farpela! Descalcem-lhe os sapatos de verniz! Nao vêem que ele, nu, faz mais figura, Como uma pedra, ou uma estrela? Pois atirem-no assim à terra dura, Ser-lhe-á conforto: Deixem-no respirar ao menos morto!
(José Régio) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: JOSÉ RÉGIO - O FILÓSOFO Seg Mar 29, 2010 5:09 pm | |
| Epitáfio para uma velha donzela
De palmito e capela, Qual manda a tradição, Erecta, lá vai ela Ser atirada ao chão. De rosário na mão, Lutou heroicamente Contra a vil tentação Do que nos pede a carne e a alma come. Secreta, ansiosa, augusta, descontente Dentro da sua túnica inconsútil, Engelhou toda à fome, Por fim morreu à sede, No seu heroísmo fútil. Bichos! penetrai vós no pobre corpo inútil!
(José Régio) | |
| | | Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: JOSÉ RÉGIO - O FILÓSOFO Sex Out 08, 2010 5:53 pm | |
| Soneto (quase inédito)
Surge Janeiro frio e pardacento, Descem da serra os lobos ao povoado; Assentam-se os fantoches em São Bento E o Decreto da fome é publicado.
Edita-se a novela do Orçamento; Cresce a miséria ao povo amordaçado; Mas os biltres do novo parlamento Usufruem seis contos de ordenado.
E enquanto à fome o povo se estiola, Certo santo pupilo de Loyola, Mistura de judeu e de vilão,
Também faz o pequeno "sacrifício" De trinta contos - só! - por seu ofício Receber, a bem dele... e da nação. (José Régio) | |
| | | Conteúdo patrocinado
| Assunto: Re: JOSÉ RÉGIO - O FILÓSOFO | |
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| | | | JOSÉ RÉGIO - O FILÓSOFO | |
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