O kosmokói, o cidadão do mundo - I
Também entre os gregos antigos muito se discutiu a questão da cidadania, se ela era algo exclusivo do habitante da cidade-estado, do homem livre que vivia aos abrigos dos muros da polis, ou se ela poderia ser estendida aos metecos, os estrangeiros recém chegados que tocavam seus negócios nos estabelecimentos da cidade, ajudando na prosperidade geral. A escola estóica de Zenão, conservadora no campo da política, foi todavia muito mais aberta e audaz neste aspecto chegando a imaginar a existência no futuro de um estado que abarcasse a humanidade por inteiro.
Convertendo-se em filósofo
"Consideramos todos os homens co-nacionais e concidadãos: seja una a vida e o mundo como um rebanho todo unido, educado por uma lei em comum"
Zenão, filósofo estóico, séc. a.C.
Inusitada foi a maneira como que Zenão de Critium introduziu-se na literatura filosófica. Naufragado bem em frente ao Pireu, o porto de Atenas, ao redor do ano de 300 a.C., provavelmente vindo de Chipre, recolhido das águas assustado e meio nauseado, procurou recuperar-se do choque com a leitura de um tratado de Xenofonte que ele encontrara num mostruário de um feirante. Embevecido, decidiu filiar-se a uma das tantas agremiações de filósofos que existiam espalhadas pela cidade. Uns anos depois , totalmente convertido em amigo das sabedoria, encontrava-se no Stoá poikilé, o Pórtico Pintado, arengando aos passantes. Ao contrário dos outros mestres-pensadores que o antecederam, que se estabeleceram em lugares afastados do centro da cidade, como era o caso da Academia de Platão, do Liceu de Aristóteles, ou do afamado Jardim de Epicuro, ele e seus seguidores, os estóicos, viviam em meio à barafunda urbana da ágora, o mercado de Atenas.
O bom sangue grego
Não foi só isso que o distinguiu dos demais sábios. Zenão avançara seus horizontes políticos para bem mais longe dos estreitos limites da polis, a cidade-estado grega. Aristóteles, uma geração anterior a ele, apesar da sua monumental erudição e reconhecida equipagem científica, não conseguia ver os regimes políticos senão como exclusivo à polis. O filósofo repreendera vivamente o seu discípulo Alexandre o Grande por ele ter estimulado a miscigenação racial durante sua campanha de conquistas contra o Império de Dario, fazendo com que gregos casassem com persas para poder assim melhor consolidar o império euro-asiático que concebera. O velho mestre não aceitava ver o sangue grego, a seus olhos superior a todos, misturar-se ao dos bárbaros, pois isso abalaria a própria concepção do que ele imaginava ser a cidadania (atributo do polites, do homem livre da Grécia, que a exercia altaneiro, enquanto que entre os orientais, vocacionados à submissão, predominava o servilismo).
A virtude estava no privado
Para Zenão porém, as formas políticas não tinham importância. Nem a concepção do cidadão cumpridor das vontades do estado o agradava. Defender direitos particulares, leis exclusivas, ou privilégios de casta ou de raça, era-lhe inaceitável. As exigências cívicas que a cidade cobrava dos seus habitantes (tributos, serviço militar obrigatório, participação nos eventos cívicos, etc..) pareciam-lhe uma extravagância. Tratou então de transferir as virtudes da esfera pública para a privada, bem mais do seu agrado. Cada um de nós devia era tratar de aperfeiçoar-se, de desenvolver defesas internas, morais e psicológicas, contra as desgraças da vida e contra os atropelos da natureza, para desta maneira tornar a vida mais suportável.
Cultivando uma consciência livre e independente, o sábio estóico idealizado por Zenão, sabia que o mundo não acabava nas muralhas da cidade. Desconsiderando o nascimento, cor ou religião, encontrava em seu íntimo algo que o unia ao restante dos homens: a essência humana em comum. Sentia elos outros aquela simpatia natural que Kant, muito mais tarde, apontaria como o mais significativo traço que nos separa dos animais. Consequentemente, pensar o estado e a religião como algo pertinente apenas a uma cidade, ou a um par de províncias, era-lhe um enorme contra-senso.