Anarca
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| Assunto: MANUEL ALEGRE - "O GARRAFÃO DE ÁGUEDA" Qui maio 27, 2010 1:24 pm | |
| Filho de José de Faria de sousa e Melo Ferreira Duarte e de Maria Manuela Alegre de Melo Duarte, a sua família tem referências na política e no desporto – o seu trisavô paterno, Francisco da Silva Melo Soares de Freitas, fundador dos caminhos de ferro do Barreiro e primeiro Visconde dessa localidade, esteve nas revoltas contra D. Miguel I, tendo sido decapitado; o avô materno, Manuel Ribeiro Alegre, pertenceu à Carbonária e foi deputado à Assembleia Constituinte em 1911, bem como Governador Civil de Santarém; o bisavô paterno, Carlos de Faria e Melo, 1º barão de Cadoro, foi administrador do Concelho de Aveiro; o avô paterno, Mário Ferreira Duarte introduziu, com Guilherme Pinto Basto, várias modalidades desportivas em Portugal, e deu o seu nome ao antigo Estádio de Futebol de Aveiro; o seu pai, Francisco José de Faria e Melo Ferreira Duarte, jogou na Académica e foi campeão de atletismo – o próprio Manuel Alegre sagrou-se campeão nacional de natação e foi atleta internacional da Associação Académica de Coimbra nessa modalidade. A sua infância e juventude encontram-se retratadas no romance Alma (1995).
À excepção dos primeiros estudos, feitos em Águeda, o restante percurso escolar é marcado por constantes mudanças de estabelecimentos de ensino: fez o primeiro ano do liceu no Passos Manuel, em Lisboa, no segundo esteve três meses como aluno interno no Colégio Almeida Garrett, no Cartaxo, seis meses no Colégio Castilho, em São João da Madeira e depois foi para o Porto, concluíndo os estudos secundários no Liceu Alexandre Herculano. Aí fundou, com José Augusto Seabra, o jornal Prelúdio.
Vai, em 1956, para a Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Pouco depois inicia o seu percurso político, nos grupos de oposição estudantil ao Estado Novo. Torna-se militante do Partido Comunista Português em 1957. Enquanto membro da Comissão da Academia, apoiou (em 1958) a candidatura de Humberto Delgado à Presidência da República. Não teve menor relevo na actividade cultural: participou na fundação do Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra e foi actor do Teatro de Estudantes da Universidade de Coimbra, deslocando-se para actuar em Bruxelas (1958), Cabo Verde (1959) e Bristol (1960).
Em 1960 publica poemas nas revistas Briosa (que dirigiu), Vértice e Via Latina, participando ainda na colectânea A Poesia Útil e Poemas Livres, juntamente com Rui Namorado, Fernando Assis Pacheco e José Carlos Vasconcelos.
Em 1961 é chamado a cumprir serviço militar e assenta praça na Escola Prática de Infantaria, em Mafra, de onde saía, pouco depois, para a Ilha de São Miguel. Aí desencadeia o movimento de Juntas de Acção Patriótica de Estudantes, constituídas por militares e civis. Além disso chega a traçar, com Melo Antunes e outros, um plano para tomar conta da ilha, que não se concretiza. Em 1962 é mobilizado para Angola, onde é preso pela PIDE e condenado a seis meses de reclusão na Fortaleza de S. Paulo, em Luanda, acusado de tentativa de revolta militar contra à Guerra do Ultramar. Na cadeia conhece escritores angolanos como Luandino Vieira, António Jacinto e António Cardoso. Regressa a Portugal em 1964. A ameaça de nova detenção e de julgamento pelo Tribunal Militar leva-o a passar à clandestinidade e a partir para o exílio, tendo sido auxiliado pelo poeta João José Cochofel, que o esconde no norte do país.
Chegado a Paris em Julho de 1964, participa na Terceira Conferência e é eleito para a Direcção da Frente Patriótica de Libertação Nacional (presidida por Humberto Delgado). Isto dar-lhe-á a possibilidade de depor, como representante dessa organização, perante as Nações Unidas, sobre a sua experiência em Angola, e contactar com os líderes dos movimentos africano de libertação, como Agostinho Neto, Eduardo Mondlane, Samora Machel, Amílcar Cabral, Mário Pinto de Andrade e Aquino de Bragança. Entre 1964 e 1974 está exilado em Argel, onde é locutor da emissora A Voz da Liberdade. Entretanto, os seus dois primeiros livros, Praça da Canção (1965) e O Canto e as Armas (1967), circulam clandestinamente. Poemas seus, cantados por Zeca Afonso e Adriano Correia de Oliveira, tornam-se emblemáticos da chamada resistência. Em 1968 entra em ruptura com o Partido Comunista Português, em consequência dos acontecimentos da Primavera de Praga, em 1968, e da invasão das forças do Pacto de Varsóvia naquele país.
Regressa a Portugal a 2 de Maio de 1974. Entra nos quadros da Radiodifusão Portuguesa, como director dos Serviços Recreativos e Culturais, e é um dos fundadores (com Piteira Santos, Nuno Bragança e outros) dos Centros Populares 25 de Abril, que pretendiam um papel cívico complementar ao dos partidos. Ainda em 1974 adere ao Partido Socialista, de que foi dirigente nacional, e é eleito deputado à Assembleia Constituinte, em 1975. É deputado à Assembleia da República a partir de 1976, integrando também o I Governo Constitucional (de Mário Soares), primeiro como Secretário de Estado da Comunicação Social, depois como Secretário de Estado Adjunto do Primeiro-Ministro para os Assuntos Políticos. Também no Parlamento foi presidente da Comissão Parlamentar de Negócios Estrangeiros, vice-presidente da Delegação Parlamentar Portuguesa ao Conselho da Europa, vice-presidente do Grupo Parlamentar do PS e vice-presidente da Assembleia da República. Em 2004 foi candidato a secretário-geral do PS, perdendo para José Sócrates e, em 2005, foi candidato independente às eleições presidenciais, obtendo mais votos que Mário Soares, então candidato oficial do PS. É membro do Conselho de Estado e das Ordens Honoríficas de Portugal. É coordenador do Movimento de Intervenção e Cidadania. É, novamente, candidato à Presidência em 2011.
No total foi deputado 34 anos. Quando abandonou o parlamento passou a acumular à sua reforma de 3219 euros como aposentado da RDP, uma subvenção vitalícia superior a dois mil euros mensais.[1].
Além da actividade política, salienta-se o seu proeminente labor literário, quer como poeta, quer como ficcionista, sendo a sua obra dominada, tanto pelo espírito combativo, como pela amargura da prisão. É o único autor português incluído na antologia Cent poemes sur l'exil, editada pela Liga dos Direitos do Homem, em França (1993). Entre os seus inúmeros de poemas musicados contam-se a Trova do vento que passa. Pelo conjunto da sua obra recebeu, entre outros, o Prémio Pessoa (1999), sendo de mencionar também o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores (1998). É sócio-correspondente da Classe de Letras da Academia das Ciências de Lisboa, eleito em 2005.
Última edição por Anarca em Qui maio 27, 2010 1:42 pm, editado 1 vez(es) | |
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Anarca
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| Assunto: Re: MANUEL ALEGRE - "O GARRAFÃO DE ÁGUEDA" Qui maio 27, 2010 1:25 pm | |
| Trova do Vento que Passa
Pergunto ao vento que passa noticias do meu país e o vento cala a desgraça e vento nada me diz.
Pergunto aos rios que levam tanto sonho à flor das águas e os rios não me sossegam levam sonhos deixam mágoas.
Levam sonhos deixam mágoas ai rios do meu país minha pátria à flor das águas para onde vais? Ninguem diz.
Se o verde trevo desfolhas pede noticias e diz ao trevo de quatro folhas que morro por meu país.
Pergunto à gente que passa porque vai de olhos no chão. Silencio - é tudo o que tem quem vive na servidão.
Vi florir os verdes ramos direitos e ao céu voltados. E a quem gosta de ter amos vi sempre os ombros curvados.
E o vento não me diz nada ninguem diz nada de novo. Vi minha pátria pregada nos braços em cruz do povo.
Vi minha pátria na margem dos rios que vão pr'o mar como quem ama a viagem mas tem sempre de ficar.
Vi navios partir (minha pátria à flor das aguas) vi minha pátria florir (verdes folhas verdes mágoas).
Há quem te queira ignorada e fale pátria em teu nome. Eu vi-te crucificada nos braços negros da fome.
E o vento não me diz nada só o silencio persiste. Vi minha pátria parada à beira de um rio triste.
Ninguém diz nada de novo se noticias vou pedindo nas mãos vazias do povo vi minha pátria florindo.
E a noite cresce por dentro dos homens do meu país. Peço noticias ao vento e o vento nada me diz.
Mas há sempre uma candeia dentro da propria desgraça ha sempre alguem que semeia canções do vento que passa.
Mesmo na noite mais triste em tempo de servidão há sempre alguem que resiste há sempre alguem que diz não.
(Manuel Alegre) | |
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Anarca
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| Assunto: Re: MANUEL ALEGRE - "O GARRAFÃO DE ÁGUEDA" Qui maio 27, 2010 1:31 pm | |
| As mãos
Com mãos se faz a paz se faz a guerra. Com mãos tudo se faz e se desfaz. Com mãos se faz o poema - e são de terra. Com mãos se faz a guerra - e são a paz.
Com mãos se rasga o mar. Com mãos se lavra. Não são de pedras estas casas mas de mãos. E estão no fruto e na palavra as mãos que são o canto e são as armas.
E cravam-se no Tempo como farpas as mãos que vês nas coisas transformadas. Folhas que vão no vento: verdes harpas.
De mãos é cada flor cada cidade. Ninguém pode vencer estas espadas: nas tuas mãos começa a liberdade.
(Manuel Alegre) | |
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Anarca
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| Assunto: Re: MANUEL ALEGRE - "O GARRAFÃO DE ÁGUEDA" Qui maio 27, 2010 1:33 pm | |
| Nambuangongo Meu Amor
Em Nambuangongo tu não viste nada não viste nada nesse dia longo longo a cabeça cortada e a flor bombardeada não tu não viste nada em Nambuangongo
Falavas de Hiroxima tu que nunca viste em cada homem um morto que não morre. Sim nós sabemos Hiroxima é triste mas ouve em Nambuangongo existe em cada homem um rio que não corre.
Em Nambuangongo o tempo cabe num minuto em Nambuangongo a gente lembra a gente esquece em Nambuangongo olhei a morte e fiquei nu. Tu não sabes mas eu digo-te: dói muito. Em Nambuangongo há gente que apodrece.
Em Nambuangongo a gente pensa que não volta cada carta é um adeus em cada carta se morre cada carta é um silêncio e uma revolta. Em Lisboa na mesma isto é a vida corre. E em Nambuangongo a gente pensa que não volta.
É justo que me fales de Hiroxima. Porém tu nada sabes deste tempo longo longo tempo exactamente em cima do nosso tempo. Ai tempo onde a palavra vida rima com a palavra morte em Nambuangongo.
(Manuel Alegre)
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Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: MANUEL ALEGRE - "O GARRAFÃO DE ÁGUEDA" Sex maio 28, 2010 11:50 am | |
| Flores para Coimbra
Que mil flores desabrochem. Que mil flores (outras nenhumas) onde amores fenecem que mil flores floresçam onde só dores florescem.
Que mil flores desabrochem. Que mil espadas (outras nenhumas não) onde mil flores com espadas são cortadas que mil espadas floresçam em cada mão.
Que mil espadas floresçam onde só penas são. Antes que amores feneçam que mil flores desabrochem. E outras nenhumas não.
(Manuel Alegre) | |
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Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: MANUEL ALEGRE - "O GARRAFÃO DE ÁGUEDA" Seg maio 31, 2010 12:37 pm | |
| Última Página
Vou deixar este livro. Adeus. Aqui morei nas ruas infinitas. Adeus meu bairro página branca onde morri onde nasci algumas vezes.
Adeus palavras comboios adeus navio. De ti povo não me despeço. Vou contigo. Adeus meu bairro versos ventos.
Não voltarei a Nambuangongo onde tu meu amor não viste nada. Adeus camaradas dos campos de batalha. Parto sem ti Pedro Soldado.
Tu Rapariga do País de Abril tu vens comigo. Não te esqueças da primavera. Vamos soltar a primavera no País de Abril.
Livro: meu suor meu sangue aqui te deixo no cimo da pátria Meto a viola debaixo do braço e viro a página. Adeus.
(Manuel Alegre) | |
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Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: MANUEL ALEGRE - "O GARRAFÃO DE ÁGUEDA" Ter Jun 01, 2010 11:50 am | |
| Coisa Amar
Contar-te longamente as perigosas coisas do mar. Contar-te o amor ardente e as ilhas que só há no verbo amar. Contar-te longamente longamente.
Amor ardente. Amor ardente. E mar. Contar-te longamente as misteriosas maravilhas do verbo navegar. E mar. Amar: as coisas perigosas.
Contar-te longamente que já foi num tempo doce coisa amar. E mar. Contar-te longamente como doi
desembarcar nas ilhas misteriosas. Contar-te o mar ardente e o verbo amar. E longamente as coisas perigosas.
(Manuel Alegre) | |
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Anarca
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| Assunto: Re: MANUEL ALEGRE - "O GARRAFÃO DE ÁGUEDA" Qua Jun 02, 2010 12:53 pm | |
| Debaixo das Oliveiras
Este foi o mês em que cantei dentro de minha casa debaixo das oliveiras.
O mês em que a brisa me pôs nas mãos uma harpa de folhas e a terra me emprestou sua flauta e sua lua. Maré viva. Meu sangue atravessado por um cometa visível a olho nu tangido por satélites e aves de arribação navegado por peixes desconhecidos.
Este foi o mês em que cantei como quem morre e ressuscita no terceiro dia de cada sílaba.
O mês em que subi a uma colina dentro de minha casa olhei a terra e o mar depois cantei como quem faz com duas pedras o primeiro lume. Palavras e pedras. Palavras e lume de uma vida.
Este foi o mês em que fui a um lugar santo dentro de minha casa. O mês em que saí dos campos e me banhei no rio como quem se baptiza e cantei debaixo das oliveiras as mãos cheias de terra. Palavras e terra de uma vida.
Este foi o mês em que cantei como quem espelha ao vento suas cinzas e cresce de seu próprio adubo carregado de folhas. Palavras e folhas de uma vida.
O mês em que a mulher tocou meus ombros com sua graça e me deu a beber a água pura do seu poço. Este foi o mês em que o filho derramou dentro de mim o orvalho e o sol de sua manhã.
O mês em que cantei como quem de si se perde e reencontra nas coisas novamente nomeadas.
Este foi o mês em que atravessei montanhas e cheguei a um lugar onde as palavras escorriam leite e mel. MILAGRE MILAGRE gritaram dentro de mim as aves todas da floresta.
Então reparei que era o lugar do poema o lugar santo onde cantei entre mulher e o filho como quem dá graças.
Este foi o mês em que cantei dentro de minha casa debaixo das oliveiras.
(Manuel Alegre) | |
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Anarca
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| Assunto: Re: MANUEL ALEGRE - "O GARRAFÃO DE ÁGUEDA" Sex Jun 04, 2010 1:58 pm | |
| Lisboa perto e longe
Lisboa chora dentro de Lisboa Lisboa tem palácios sentinelas. E fecham-se janelas quando voa nas praças de Lisboa - branca e rota a blusa de seu povo - essa gaivota.
Lisboa tem casernas catedrais museus cadeias donos muito velhos palavras de joelhos tribunais. Parada sobre o cais olhando as águas Lisboa é triste assim cheia de mágoas.
Lisboa tem o sol crucificado nas armas que em Lisboa estão voltadas contra as mãos desarmadas - povo armado de vento revoltado violas astros - meu povo que ninguém verá de rastos.
Lisboa tem o Tejo tem veleiros e dentro das prisões tem velas rios dentro das mãos navios prisioneiros ai olhos marinheiros - mar aberto - com Lisboa tão longe em Lisboa tão perto.
Lisba é uma palavra dolorosa Lisboa são seis letras proibidas seis gaivotas feridas rosa a rosa Lisboa a desditosa desfolhada palavra por palavra espada a espada.
Lisboa tem um cravo em cada mão tem camisas que abril desabotoa mas em maio Lisboa é uma canção onde há versos que são cravos vermelhos Lisboa que ninguem verá de joelhos.
Lisboa a desditosa a violada a exilada dentro de Lisboa. E há um braço que voa há uma espada. E há uma madrugada azul e triste Lisboa que não morre e que resiste.
(Manuel Alegre) | |
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Anarca
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| Assunto: Re: MANUEL ALEGRE - "O GARRAFÃO DE ÁGUEDA" Ter Jun 08, 2010 1:41 pm | |
| Letra para um hino
É possível falar sem um nó na garganta é possível amar sem que venham proibir é possível correr sem que seja fugir. Se tens vontade de cantar não tenhas medo: canta.
É possível andar sem olhar para o chão é possível viver sem que seja de rastos. Os teus olhos nasceram para olhar os astros se te apetece dizer não grita comigo: não.
É possível viver de outro modo. É possível transformares em arma a tua mão. É possível o amor. É possível o pão. É possível viver de pé.
Não te deixes murchar. Não deixes que te domem. É possível viver sem fingir que se vive. É possível ser homem. É possível ser livre livre livre.
(Manuel Alegre) | |
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Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: MANUEL ALEGRE - "O GARRAFÃO DE ÁGUEDA" Seg Jun 28, 2010 6:28 pm | |
| Abaixo el-rei Sebastião
É preciso enterrar el-rei Sebastião é preciso dizer a toda a gente que o Desejado já não pode vir. É preciso quebrar na ideia e na canção a guitarra fantástica e doente que alguém trouxe de Alcácer Quibir.
Eu digo que está morto. Deixai em paz el-rei Sebastião deixai-o no desastre e na loucura. Sem precisarmos de sair o porto temos aqui à mão a terra da aventura.
Vós que trazeis por dentro de cada gesto uma cansada humilhação deixai falar na vossa voz a voz do vento cantai em tom de grito e de protesto matai dentro de vós el-rei Sebastião.
Quem vai tocar a rebate os sinos de Portugal? Poeta: é tempo de um punhal por dentro da canção. Que é preciso bater em quem nos bate é preciso enterrar el-rei Sebastião.
(Manuel Alegre) | |
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Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: MANUEL ALEGRE - "O GARRAFÃO DE ÁGUEDA" Ter Jun 29, 2010 7:26 pm | |
| Uma flor de verde pinho
Eu podia chamar-te pátria minha dar-te o mais lindo nome português podia dar-te um nome de rainha que este amor é de Pedro por Inês.
Mas não há forma não há verso não há leito para este fogo amor para este rio. Como dizer um coração fora do peito? Meu amor transbordou. E eu sem navio.
Gostar de ti é um poema que não digo que não há taça amor para este vinho não há guitarra nem cantar de amigo não há flor não há flor de verde pinho.
Não há barco nem trigo não há trevo não há palavras para dizer esta canção. Gostar de ti é um poema que não escrevo. Que há um rio sem leito. E eu sem coração.
(Manuel Alegre) | |
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Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: MANUEL ALEGRE - "O GARRAFÃO DE ÁGUEDA" Qui Jul 01, 2010 1:45 pm | |
| Canção tão simples
Quem poderá domar os cavalos do vento quem poderá domar este tropel do pensamento à flor da pele?
Quem poderá calar a voz do sino triste que diz por dentro do que não se diz a fúria em riste do meu país?
Quem poderá proibir estas letras de chuva que gota a gota escrevem nas vidraças pátria viúva a dor que passa?
Quem poderá prender os dedos farpas que dentro da canção fazem das brisas as armas harpas que são precisas?
(Manuel Alegre) | |
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Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: MANUEL ALEGRE - "O GARRAFÃO DE ÁGUEDA" Sex Jul 02, 2010 4:49 pm | |
| Ser ou não ser
Qualquer coisa está podre no Reino da Dinamarca. Se os novos partem e ficam só os velhos e se do sangue as mãos trazem a marca se os fantasmas regressam e há homens de joelhos qualquer coisa está podre no Reino da Dinamarca.
Apodreceu o sol dentro de nós apodreceu o vento em nossos braços. Porque há sombras na sombra dos teus passos há silêncios de morte em cada voz.
Ofélia-Pátria jaz branca de amor. Entre salgueiros passa flutuando. E anda Hamlet em nós por ela perguntando entre ser e não ser firmeza indecisão.
Até quando? Até quando?
Já de esperar se desespera. E o tempo foge e mais do que a esperança leva o puro ardor. Porque um só tempo é o nosso. E o tempo é hoje. Ah se não ser é submissão ser é revolta. Se a Dinamarca é para nós uma prisão e Elsenor se tornou a capital da dor ser é roubar à dor as próprias armas e com elas vencer estes fantasmas que andam à solta em Elsenor.
(Manuel Alegre) | |
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Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: MANUEL ALEGRE - "O GARRAFÃO DE ÁGUEDA" Seg Jul 05, 2010 5:28 pm | |
| Agora Mesmo
Está gente a morrer agora mesmo em qualquer lado Está gente a morrer e nós também
Está gente a despedir-se sem saber que para Sempre Este som já passou Este gesto também Ninguém se banha duas vezes no mesmo instante Tu próprio te despedes de ti próprio Não és o mesmo que escreveu o verso atrás Já estás diferente neste verso e vais com ele
Os amantes agarram-se desesperadamente Eis como se beijam e mordem e por vezes choram Mais do que ninguém eles sabem que estão a despedir-se
A Terra gira e nós também A Terra morre e nós Também Não é possível parar o turbilhão Há um ciclone invisível em cada instante Os pássaros voam sobre a própria despedida As folhas vão-se e nós Também Não é vento É movimento fluir do tempo amor e morte Agora mesmo e para todo o sempre Amen
Manuel Alegre, in "Chegar Aqui" | |
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Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: MANUEL ALEGRE - "O GARRAFÃO DE ÁGUEDA" Ter Jul 06, 2010 1:42 pm | |
| Balada do Poema que não Há
Quero escrever um poema Um poema não sei de quê Que venha todo vermelho Que venha todo de negro Às de copas às de espadas Quero escrever um poema Como de sortes cruzadas
Quero escrever um poema Como quem escreve o momento Cheiro de terra molhada Abril com chuva por dentro E este ramo de alfazema Por sobre a tua almofada Quero escrever um poema Que seja de tudo ou nada
Um poema não sei de quê Que traga a notícia louca Da história que ninguém crê Ou esta afta na boca Esta noite sem sentido Coisa pouca coisa pouca Tão aquém do pressentido Que me dói não sei porquê
Quero um poema ao contrário Deste estado que padeço Meu cavalo solitário A cavalgar no avesso De um verso que não conheço
Que venha de capa e espada Ou de chicote na mão Sobre esta noite acordada Quero um poema noitada Um poema até mais não
Quero um poema que diga Que nada há que dizer Senão que a noite castiga Quem procura uma cantiga Que não é de adormecer
Poema de amor e morte No reino da Dinamarca Ser ou não ser eis a sorte O resto é silêncio e dor Poema que traga a marca Do Castelo de Elsenor
Quero o poema que me dê Aquela música antiga Da Provença e da Toscânia Vinho velho de Chianti Com Ezra Pound em Rapallo E versos de Cavalcanti Ou Guilherme de Aquitânia Dormindo sobre um cavalo
E com ele então dizer O meu poema está feito Não sei de quê nem sobre quê
Dormindo sobre um cavalo
Quero o poema perfeito Que ninguém há-de escrever Que ele traga a estrela negra Do canto e da solidão Ou aquela toutinegra De Camões quando escrevia Sôbolos rios que vão
Que venha como um destino Às de copas às de espadas Que venha para viver Que venha para morrer Se tiver que ser será E não há cartas marcadas Só assim poderá ser O poema que não há
Manuel Alegre, in "Babilónia" | |
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Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: MANUEL ALEGRE - "O GARRAFÃO DE ÁGUEDA" Qua Jul 07, 2010 1:16 pm | |
| Balada de Lisboa
Em cada esquina te vais Em cada esquina te vejo Esta é a cidade que tem Teu nome escrito no cais A cidade onde desenho Teu rosto com sol e Tejo
Caravelas te levaram Caravelas te perderam Esta é a cidade onde chegas Nas manhãs de tua ausência Tão perto de mim tão longe Tão fora de seres presente
Esta e a cidade onde estás Como quem não volta mais Tão dentro de mim tão que Nunca ninguém por ninguém Em cada dia regressas Em cada dia te vais
Em cada rua me foges Em cada rua te vejo Tão doente da viagem Teu rosto de sol e Tejo Esta é a cidade onde moras Como quem está de passagem
Às vezes pergunto se Às vezes pergunto quem Esta é a cidade onde estás Com quem nunca mais vem Tão longe de mim tão perto Ninguém assim por ninguém
Manuel Alegre, in "Babilónia" | |
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Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: MANUEL ALEGRE - "O GARRAFÃO DE ÁGUEDA" Qui Jul 08, 2010 4:15 pm | |
| As Sete Penas do Amor Errante
Eu não sei se os teus olhos se gaivotas mas era o mar e a Índia já perdida as ilhas e o azul o longe e as rotas minha vida em pedaços repartida.
Eu não sei se o teu rosto se um navio mas era o Tejo a mágoa a brisa o cais meu amor a partir-se à beira-rio em uma nau chamada nunca mais.
Eu não sei se os teus dedos se as amarras mas era algo que partia e que ficava. Ou talvez cordas de guitarras ó meu amor de embarque desembarque.
Eu não sei se era amor ou se loucura mas era ainda o verbo descobrir ó meu amor de risco e de aventura não sei se Ceuta ou Alcácer Quibir.
Eu não sei se era perto se distante mas era ainda o mar desconhecido ou Camões a penar por Violante as sete penas do amor proibido.
Eu não sei se ventura se castigo mas era ainda o sangue e a memória talvez o último cantar de amigo amor de perdição amor de glória.
Eu não sei se teu corpo se meu chão mas era ainda a terra e o mar. E em cada teu gesto a grande peregrinação das sete penas do amor lusíada.
Manuel Alegre, in "Atlântico" | |
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| Assunto: Re: MANUEL ALEGRE - "O GARRAFÃO DE ÁGUEDA" | |
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