| ARY DOS SANTOS - O REVOLUCIONÁRIO | |
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Autor | Mensagem |
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Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: ARY DOS SANTOS - O REVOLUCIONÁRIO Qua Ago 12, 2009 9:08 pm | |
| Poeta português, natural de Lisboa. Saiu de casa aos 16 anos, exercendo várias actividades como meio de subsistência. Revelando-se como poeta com a obra Asas (1953), publicou, em 1963, o livro Liturgia de Sangue, a que se seguiram Azul Existe, Tempo de Lenda das Amendoeiras e Adereços, Endereços (todos de 1965). Em 1969, colaborou na campanha da Comissão Democrática Eleitoral e, mais tarde, filiou-se no Partido Comunista Português, tendo tido uma intervenção politizada, mas muito pessoal. Ficou sobretudo conhecido como autor de poemas para canções do Concurso da Canção da RTP. Os seus temas «Desfolhada» e «Tourada» saíram ambos vencedores. Em 1971, foi atribuído a «Meu Amor, Meu Amor», também da sua autoria, o grande prémio da Canção Discográfica. Declamador, gravou os discos «Ary Por Si Próprio» (1970), «Poesia Política» (1974), «Bandeira Comunista» (1977) e «Ary por Ary» (1979), entre outros. Publicou ainda os volumes Insofrimento In Sofrimento (1969), Fotos-Grafias (1971), Resumo (1973), As Portas que Abril Abriu (1975), O Sangue das Palavras (1979) e 20 Anos de Poesia (1983). Em 1994, foi editada Obra Poética, uma colectânea das suas obras. Personalidade entusiasta e irreverente, muitos dos seus textos têm um forte tom satírico e até panfletário, anticonvencional, contribuindo decisivamente para a abertura de novas possibilidades para a música popular portuguesa. Deixou cerca de 600 textos destinados a canções.
Última edição por Anarca em Qua Ago 12, 2009 9:11 pm, editado 1 vez(es) | |
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Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: ARY DOS SANTOS - O REVOLUCIONÁRIO Qua Ago 12, 2009 9:10 pm | |
| Poeta castrado não!
Serei tudo o que disserem por inveja ou negação: cabeçudo dromedário fogueira de exibição teorema corolário poema de mão em mão lãzudo publicitário malabarista cabrão. Serei tudo o que disserem: Poeta castrado não!
Os que entendem como eu as linhas com que me escrevo reconhecem o que é meu em tudo quanto lhes devo: ternura como já disse sempre que faço um poema; saudade que se partisse me alagaria de pena; e também uma alegria uma coragem serena em renegar a poesia quando ela nos envenena.
Os que entendem como eu a força que tem um verso reconhecem o que é seu quando lhes mostro o reverso:
Da fome já não se fala - é tão vulgar que nos cansa - mas que dizer de uma bala num esqueleto de criança?
Do frio não reza a história - a morte é branda e letal - mas que dizer da memória de uma bomba de napalm?
E o resto que pode ser o poema dia a dia? - Um bisturi a crescer nas coxas de uma judia; um filho que vai nascer parido por asfixia?! - Ah não me venham dizer que é fonética a poesia!
Serei tudo o que disserem por temor ou negação: Demagogo mau profeta falso médico ladrão prostituta proxeneta espoleta televisão. Serei tudo o que disserem: Poeta castrado não! (Ary dos Santos) | |
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Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: ARY DOS SANTOS - O REVOLUCIONÁRIO Qui Ago 13, 2009 10:38 pm | |
| Queixa e imprecações dum condenado à morte
Por existir me cegam, Me estrangulam, Me julgam, Me condenam, Me esfacelam. Por me sonhar em vez de ser me insultam, Por não dormir me culpam E me dão o silêncio por carrasco E a solidão por cela. Por lhes falar, proíbem-me as palavras, Por lhes doer, censuram-me o desejo E marcam-me o destino a vergastadas Pois não ousam morder o meu corpo de beijos. Passo a passo os encontro no caminho Que os deuses e o sangue me traçaram. E negando-me, bebem do meu vinho E roubam um lugar na minha cama E comem deste pão que as minhas mãos infames amassaram. Com angústia e com lama. Passo a passo os encontro no caminho. Mas eu sigo sozinho!
Dono dos ventos que me arremessaram, Senhor dos tempos que me destruíram, Herói dos homens que me derrubaram, Macho das coisas que me possuíram.
Andando entre eles invento as passadas Que hão-de em triunfo conduzir-me à morte E as horas que sei que me estão contadas, Deslumbram-me e correm, sem que isso me importe.
Sou eu que me chamo nas vozes que oiço, Sou eu quem se ri nos dentes que ranjo, Sou eu quem me corto a mim mesmo o pescoço, Sou eu que sou doido, sou eu que sou anjo.
Sou eu que passeio as correntes e as asas Por sobre as cidades que vou destruindo, Sou eu o incêndio que lhes devora as casas, O ladrão que entra quando estão dormindo.
Sou eu quem de noite lhes perturba o sono, Lhes frustra o amor, lhes aperta a garganta. Sou eu que os enforco numa corda de sonho Que apodrece e cai mal o sol se levanta.
Sou eu quem de dia lhes cicia o tédio, O tédio que pensam, que bebem e comem, O tédio de serem sem nenhum remédio A perfeita imagem do que for um homem.
Sou eu que partindo aos poucos lhes deixo Uma herança de pragas e animais nocivos. Sou eu que morrendo lhes segredo o horror de serem inúteis e ficarem vivos.
(Ary dos Santos) | |
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Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: ARY DOS SANTOS - O REVOLUCIONÁRIO Sáb Ago 15, 2009 5:29 pm | |
| Os putos
Uma bola de pano, num charco Um sorriso traquina, um chuto Na ladeira a correr, um arco O céu no olhar, dum puto.
Uma fisga que atira a esperança Um pardal de calções, astuto E a força de ser criança Contra a força dum chui, que é bruto.
Parecem bandos de pardais à solta Os putos, os putos São como índios, capitães da malta Os putos, os putos Mas quando a tarde cai Vai-se a revolta Sentam-se ao colo do pai É a ternura que volta E ouvem-no a falar do homem novo São os putos deste povo A aprenderem a ser homens.
As caricas brilhando na mão A vontade que salta ao eixo Um puto que diz que não Se a porrada vier não deixo
Um berlinde abafado na escola Um pião na algibeira sem cor Um puto que pede esmola Porque a fome lhe abafa a dor.
(Ary dos Santos) | |
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Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: ARY DOS SANTOS - O REVOLUCIONÁRIO Dom Ago 16, 2009 8:03 pm | |
| Auto-Retrato
Poeta é certo mas de cetineta fulgurante de mais para alguns olhos bom artesão na arte da proveta narciso de lombardas e repolhos.
Cozido à portuguesa mais as carnes suculentas da auto-importância com toicinho e talento ambas partes do meu caldo entornado na infância.
Nos olhos uma folha de hortelã que é verde como a esperança que amanhã amanheça de vez a desventura.
Poeta de combate disparate palavrão de machão no escaparate porém morrendo aos poucos de ternura.
(Ary dos Santos) | |
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Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: ARY DOS SANTOS - O REVOLUCIONÁRIO Qua Ago 19, 2009 9:10 pm | |
| Tourada
Não importa sol ou sombra camarotes ou barreiras toureamos ombro a ombro as feras.
Ninguém nos leva ao engano toureamos mano a mano só nos podem causar danos espera.
Entram guizos chocas e capotes e mantilhas pretas entram espadas chifres e derrotes e alguns poetas entram bravos cravos e dichotes porque tudo o mais são tretas.
Entram vacas depois dos forcados que não pegam nada.
Soam brados e olés dos nabos que não pagam nada e só ficam os peões de brega cuja profissão não pega.
Com bandarilhas de esperança afugentamos a fera estamos na praça da Primavera.
Nós vamos pegar o mundo pelos cornos da desgraça e fazermos da tristeza graça.
Entram velhas doidas e turistas entram excursões entram benefícios e cronistas entram aldrabões entram marialvas e coristas entram galifões de crista.
Entram cavaleiros à garupa do seu heroísmo entra aquela música maluca do passodoblismo entra a aficionada e a caduca mais o snobismo e cismo...
Entram empresários moralistas entram frustrações entram antiquários e fadistas e contradições e entra muito dólar muita gente que dá lucro as milhões.
E diz o inteligente que acabaram as canções.
(Ary dos Santos)
Última edição por Anarca em Ter Jul 27, 2010 1:46 pm, editado 1 vez(es) | |
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Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: ARY DOS SANTOS - O REVOLUCIONÁRIO Sex Ago 21, 2009 12:00 am | |
| A cidade é um chão de palavras pisadas
A cidade é um chão de palavras pisadas a palavra criança a palavra segredo. A cidade é um céu de palavras paradas a palavra distância e a palavra medo.
A cidade é um saco um pulmão que respira pela palavra água pela palavra brisa A cidade é um poro um corpo que transpira pela palavra sangue pela palavra ira.
A cidade tem praças de palavras abertas como estátuas mandadas apear. A cidade tem ruas de palavras desertas como jardins mandados arrancar.
A palavra sarcasmo é uma rosa rubra. A palavra silêncio é uma rosa chá. Não há céu de palavras que a cidade não cubra não há rua de sons que a palavra não corra à procura da sombra de uma luz que não há.
(Ary dos Santos) | |
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Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: ARY DOS SANTOS - O REVOLUCIONÁRIO Qua Ago 26, 2009 11:39 pm | |
| Soneto
Fecham-se os dedos donde corre a esperança, Toldam-se os olhos donde corre a vida. Porquê esperar, porquê, se não se alcança Mais do que a angústia que nos é devida?
Antes aproveitar a nossa herança De intenções e palavras proibidas. Antes rirmos do anjo, cuja lança Nos expulsa da terra prometida.
Antes sofrer a raiva e o sarcasmo, Antes o olhar que peca, a mão que rouba, O gesto que estrangula, a voz que grita.
Antes viver do que morrer no pasmo Do nada que nos surge e nos devora, Do monstro que inventámos e nos fita.
(Ary dos Santos) | |
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Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: ARY DOS SANTOS - O REVOLUCIONÁRIO Qui Ago 27, 2009 9:46 pm | |
| Epígrafe
De palavras não sei. Apenas tento desvendar o seu lento movimento quando passam ao longo do que invento como pre-feitos blocos de cimento.
De palavras não sei. Apenas quero retomar-lhes o peso a consistência e com elas erguer a fogo e ferro um palácio de força e resistência.
De palavras não sei. Por isso canto em cada uma apenas outro tanto do que sinto por dentro quando as digo.
Palavra que me lavra. Alfaia escrava. De mim próprio matéria bruta e brava expressão da multidão que está comigo.
(Ary dos Santos) | |
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Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: ARY DOS SANTOS - O REVOLUCIONÁRIO Sáb Ago 29, 2009 8:30 pm | |
| Ecce Homo
Desbaratamos deuses, procurando Um que nos satisfaça ou justifique. Desbaratamos esperança, imaginando Uma causa maior que nos explique.
Pensando nos secamos e perdemos Esta força selvagem e secreta, Esta semente agreste que trazemos E gera heróis e homens e poetas.
Pois Deuses somos nós. Deuses do fogo Malhando-nos a carne, até que em brasa Nossos sexos furiosos se confundam,
Nossos corpos pensantes se entrelacem E sangue, raiva, desespero ou asa, Os filhos que tivermos forem nossos.
(Ary dos Santos) | |
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Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: ARY DOS SANTOS - O REVOLUCIONÁRIO Seg Ago 31, 2009 5:31 pm | |
| Desespero
Não eram meus os olhos que te olharam Nem este corpo exausto que despi Nem os lábios sedentos que poisaram No mais secreto do que existe em ti.
Não eram meus os dedos que tocaram Tua falsa beleza, em que não vi Mais que os vícios que um dia me geraram E me perseguem desde que nasci.
Não fui eu que te quis. E não sou eu Que hoje te aspiro e embalo e gemo e canto, Possesso desta raiva que me deu
A grande solidão que de ti espero. A voz com que te chamo é o desencanto E o espermen que te dou, o desespero.
(Ary dos Santos) | |
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Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: ARY DOS SANTOS - O REVOLUCIONÁRIO Ter Set 01, 2009 9:19 pm | |
| Soneto de Inês
Dos olhos corre a água do Mondego os cabelos parecem os choupais Inês! Inês! Rainha sem sossego dum rei que por amor não pode mais.
Amor imenso que também é cego amor que torna os homens imortais. Inês! Inês! Distância a que não chego morta tão cedo por viver demais.
Os teus gestos são verdes os teus braços são gaivotas poisadas no regaço dum mar azul turquesa intemporal.
As andorinhas seguem os teus passos e tu morrendo com os olhos baços Inês! Inês! Inês de Portugal.
(Ary dos Santos) | |
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Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: ARY DOS SANTOS - O REVOLUCIONÁRIO Sáb Set 05, 2009 10:25 am | |
| Cantiga de Amigo
Nem um poema nem um verso nem um canto tudo raso de ausência tudo liso de espanto e nem Camões Virgílio Shelley Dante o meu amigo está longe e a distância é bastante.
Nem um som nem um grito nem um ai tudo calado todos sem mãe nem pai Ah não Camões Virgílio Shelley Dante!
o meu amigo está longe e a tristeza é bastante.
Nada a não ser este silêncio tenso que faz do amor sozinho o amor imenso. Calai Camões Virgílio Shelley Dante: o meu amigo está longe e a saudade é bastante!
(Ary dos Santos) | |
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Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: ARY DOS SANTOS - O REVOLUCIONÁRIO Qua Set 09, 2009 8:40 pm | |
| Meu amor, meu amor
Meu amor meu amor meu corpo em movimento minha voz à procura do seu próprio lamento.
Meu limão de amargura meu punhal a escrever nós parámos o tempo não sabemos morrer e nascemos nascemos do nosso entristecer.
Meu amor meu amor meu nó e sofrimento minha mó de ternura minha nau de tormento
este mar não tem cura este céu não tem ar nós parámos o vento não sabemos nadar e morremos morremos devagar devagar.
(Ary dos Santos) | |
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Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: ARY DOS SANTOS - O REVOLUCIONÁRIO Qui Set 10, 2009 11:43 pm | |
| Cavalo à solta
Minha laranja amarga e doce meu poema feito de gomos de saudade minha pena pesada e leve secreta e pura minha passagem para o breve breve instante da loucura.
Minha ousadia meu galope minha rédea meu potro doido minha chama minha réstia de luz intensa de voz aberta minha denúncia do que pensa do que sente a gente certa.
Em ti respiro em ti eu provo por ti consigo esta força que de novo em ti persigo em ti percorro cavalo à solta pela margem do teu corpo.
Minha alegria minha amargura minha coragem de correr contra a ternura.
Por isso digo canção castigo amêndoa travo corpo alma amante amigo por isso canto por isso digo alpendre casa cama arca do meu trigo.
Meu desafio minha aventura minha coragem de correr contra a ternura.
(Ary dos Santos) | |
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Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: ARY DOS SANTOS - O REVOLUCIONÁRIO Dom Set 13, 2009 1:28 pm | |
| Soneto de Mal Amar
Invento-te recordo-te distorço a tua imagem mal e bem amada sou apenas a forja em que me forço a fazer das palavras tudo ou nada.
A palavra desejo incendiada lambendo a trave mestra do teu corpo a palavra ciúme atormentada a provar-me que ainda não estou morto.
E as coisas que eu não disse? Que não digo: Meu terraço de ausência meu castigo meu pântano de rosas afogadas.
Por ti me reconheço e contradigo chão das palavras mágoa joio e trigo apenas por ternura levedadas.
Ary dos Santos, in 'O Sangue das Palavras' | |
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Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: ARY DOS SANTOS - O REVOLUCIONÁRIO Sex Set 18, 2009 9:24 pm | |
| Nona Sinfonia
É por dentro de um homem que se ouve o tom mais alto que tiver a vida a glória de cantar que tudo move a força de viver enraivecida.
Num palácio de sons erguem-se as traves que seguram o tecto da alegria pedras que são ao mesmo tempo as aves mais livres que voaram na poesia.
Para o alto se voltam as volutas hieráticas sagradas impolutas dos sons que surgem rangem e se somem.
Mas de baixo é que irrompem absolutas as humanas palavras resolutas. Por deus não basta. É mais preciso o Homem.
Ary dos Santos, in 'O Sangue das Palavras' | |
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Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: ARY DOS SANTOS - O REVOLUCIONÁRIO Sáb Set 19, 2009 5:48 pm | |
| O Poema Original
Original é o poeta que se origina a si mesmo que numa sílaba é seta noutra pasmo ou cataclismo o que se atira ao poema como se fosse ao abismo e faz um filho às palavras na cama do romantismo. Original é o poeta capaz de escrever em sismo.
Original é o poeta de origem clara e comum que sendo de toda a parte não é de lugar algum. O que gera a própria arte na força de ser só um por todos a quem a sorte faz devorar em jejum. Original é o poeta que de todos for só um.
Original é o poeta expulso do paraíso por saber compreender o que é o choro e o riso; aquele que desce à rua bebe copos quebra nozes e ferra em quem tem juízo versos brancos e ferozes. Original é o poeta que é gato de sete vozes.
Original é o poeta que chega ao despudor de escrever todos os dias como se fizesse amor.
Esse que despe a poesia como se fosse mulher e nela emprenha a alegria de ser um homem qualquer.
Ary dos Santos, in 'Resumo' | |
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Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: ARY DOS SANTOS - O REVOLUCIONÁRIO Dom Set 20, 2009 3:41 pm | |
| Meu Camarada e Amigo
Revejo tudo e redigo meu camarada e amigo. Meu irmão suando pão sem casa mas com razão. Revejo e redigo meu camarada e amigo
As canções que trago prenhas de ternura pelos outros saem das minhas entranhas como um rebanho de potros. Tudo vai roendo a erva daninha que me entrelaça: canção não pode ser serva homem não pode ser caça e a poesia tem de ser como um cavalo que passa.
É por dentro desta selva desta raiva deste grito desta toada que vem dos pulmões do infinito que em todos vejo ninguém revejo tudo e redigo: Meu camarada e amigo.
Sei bem as mós que moendo pouco a pouco trituraram os ossos que estão doendo àqueles que não falaram.
Calculo até os moinhos puxados a ódio e sal que a par dos monstros marinhos vão movendo Portugal — mas um poeta só fala por sofrimento total!
Por isso calo e sobejo eu que só tenho o que fiz dando tudo mas à toa: Amigos no Alentejo alguns que estão em Paris muitos que são de Lisboa. Aonde me não revejo é que eu sofro o meu país.
Ary dos Santos, in 'Resumo' | |
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Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: ARY DOS SANTOS - O REVOLUCIONÁRIO Seg Set 21, 2009 10:11 pm | |
| Retrato do Herói
Herói é quem num muro branco inscreve O fogo da palavra que o liberta: Sangue do homem novo que diz povo e morre devagar de morte certa.
Homem é quem anónimo por leve lhe ser o nome próprio traz aberta a alma à fome fechado o corpo ao breve instante em que a denúncia fica alerta.
Herói é quem morrendo perfilado Não é santo nem mártir nem soldado Mas apenas por último indefeso.
Homem é quem tombando apavorado dá o sangue ao futuro e fica ileso pois lutando apagado morre aceso.
Ary dos Santos, in 'Fotosgrafias' | |
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Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: ARY DOS SANTOS - O REVOLUCIONÁRIO Qua Set 23, 2009 9:44 pm | |
| Da Condição Humana
Todos sofremos. O mesmo ferro oculto Nos rasga e nos estilhaça a carne exposta O mesmo sal nos queima os olhos vivos. Em todos dorme A humanidade que nos foi imposta. Onde nos encontramos, divergimos. É por sermos iguais que nos esquecemos Que foi do mesmo sangue, Que foi do mesmo ventre que surgimos.
Ary dos Santos, in 'Liturgia do Sangue' | |
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Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: ARY DOS SANTOS - O REVOLUCIONÁRIO Qui Set 24, 2009 9:09 pm | |
| Caminharemos de Olhos Deslumbrados
Caminharemos de olhos deslumbrados E braços estendidos E nos lábios incertos levaremos O gosto a sol e a sangue dos sentidos.
Onde estivermos, há-de estar o vento Cortado de perfumes e gemidos. Onde vivermos, há-de ser o templo Dos nossos jovens dentes devorando Os frutos proibidos.
No ritual do verão descobriremos O segredo dos deuses interditos E marcados na testa exaltaremos Estátuas de heróis castrados e malditos.
Ó deus do sangue! deus de misericórdia! Ó deus das virgens loucas Dos amantes com cio, Impõe-nos sobre o ventre as tuas mãos de rosas, Unge os nossos cabelos com o teu desvario!
Desce-nos sobre o corpo como um falus irado, Fustiga-nos os membros como um látego doido, Numa chuva de fogo torna-nos sagrados, Imola-nos os sexos a um arcanjo loiro.
Persegue-nos, estonteia-nos, degola-nos, castiga-nos, Arranca-nos os olhos, violenta-nos as bocas, Atapeta de flores a estrada que seguimos E carrega de aromas a brisa que nos toca.
Nus e ensanguentados dançaremos a glória Dos nossos esponsais eternos com o estio E coroados de apupos teremos a vitória De nos rirmos do mundo num leito vazio.
Ary dos Santos, in 'Liturgia do Sangue' | |
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Anarca
Mensagens : 13406 Data de inscrição : 02/06/2009
| Assunto: Re: ARY DOS SANTOS - O REVOLUCIONÁRIO Ter Jul 27, 2010 1:43 pm | |
| HOMENAGEM AO POVO DO CHILE
Foram não sei quantos mil operários trabalhadores mulheres ardinas pedreiros jovens poetas cantores camponeses e mineiros foram não sei quantos mil que tombaram pelo Chile morrendo de corpo inteiro.
Nas suas almas abertas traziam o sol da esperança e nas duas mãos desertas uma pátria ainda criança
Gritavam Neruda Allende davam vivas ao Partido que é a chama que se acende no Povo jamais vencido – o Povo nunca se rende mesmo quando morre unido.
Alguns traziam no rosto um ricto de fogo e dor fogo vivo fogo posto pelas mãos do opressor. Outros traziam os olhos rasos de silêncio e água maré-viva de quem passa Uma vida à beira-mágoa.
Mas não termina em si próprio quem morre de pé. Vencido é aquele que tentar separar o povo unido. Por isso os que ontem caíram levantam de novo a voz. Mortos são os que traíram e vivos ficamos nós.
(Ary dos Santos) | |
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| Assunto: Re: ARY DOS SANTOS - O REVOLUCIONÁRIO | |
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