Napoleão e Goethe - I
o Imperador e o Poeta
Há quase dois séculos passados, em outubro de 1808, encontraram-se na cidade alemã de Erfurt, na Turíngia, duas das maiores expressões políticas e culturais daquela época: Napoleão Bonaparte e o poeta Goethe. Conquistando a Alemanha, o imperador, sempre perseguido pela imagem de grandeza de Carlos Magno e de outros personagens históricos, queria que o poeta assumisse a função de autor de tragédias, pensando assim consagrar e eternizar a sua presença na Literatura Universal. Goethe porém, negou-se a aceitar o papel de ser o Virgílio do Augusto dos franceses.
Virgílio e Augusto
"Eis, um homem! Vejam é um ser humano por inteiro!"
De Napoleão sobre Goethe, 2 de outubro de 1808, em Erfurt
Consta que foi Gaio Gilnio Mecenas, um milionário romano, amigo das artes e dos artistas, muito próximo ao imperador Otávio Augusto, o principal emissário junto a Virgílio, levando-lhe os recados do que o todo-poderoso de Roma desejava que o poeta compuzesse. Que o vate enaltecesse a vida rural, bucólica, digna dos verdadeiros patrícios bem como os magníficos feitos dos antepassados ilustres. Que, igualmente, desse à classe dirigente romana uma origem nobre que não fosse aquela versão popular deles serem descendentes da loba, coisa primitiva e selvagem que desmerecia a raça de senhores que os romanos haviam se tornado. Virgílio, chegou a ler para o próprio Augusto dois ou três capítulos dessas coisas encomendadas, quando os dois se encontraram em Atenas, num verão fortíssimo, mas o poeta morreu em seguida, na volta, arrasado por um febre no ano de 19 a.C. Cumpriu porém com a tarefa. Os romanos se deliciaram em saber pela “Eneida” de Virgílio que a região do Lácio, onde a cidade cresceu, havia pertencido ao bravo guerreiro Enéias, um mitológico herói troiano que escapara do desastre da queda da sua cidade, para vir lançar os fundamentos daquele potência que viria a ser Roma. Logo, Augusto era o herdeiro daquele colosso, “seu derradeiro fruto”, enquanto cabia a Roma a tarefa de dirigir as raças e as coisas do mundo. Tudo fantasia do poeta, mas inchou o patriciado local de vaidade e soberba.
Eis um homem!
Quase dois mil depois, o mesmo estratagema foi tentado por Napoleão junto a Goethe, o maior poeta da Alemanha de então. Passando pela cidade de Erfurt, na Turíngia, em outubro de 1808 - neste mesmo local em que deu-se a recente tragédia onde treze professores foram mortalmente baleados - hospedando-se no Kaiserpalast, Napoleão mandou seus emissários localizarem o pensador. O imperador estava numa mesa com dois dos seus marechais e ainda Talleyrand quando Goethe, então um venerável senhor de 60 anos, assomou-se à porta. Napoleão, então, apontando ao alemão, falou aos presentes: Voilà, un homme! “Eis um homem!”.
Em seguida, afável, disse-lhe: “Monsieur Goethe, eu alegro-me em vê-lo”. O poeta, com falsa modéstia, confessou-lhe o pasmo em ver que alguém tão atarefado como o imperador, ainda em viagem, prestasse deferência a um insignificante como ele.
Ser o trágico da corte
Querendo por o convidado a vontade, o conquistador confessou-lhe que quando era jovem oficial chegou a ler o “ Werther” (aparecido em 1774) umas seis ou sete vezes seguidas. Era a isca que ele lançara esperando uma reação positiva do poeta à proposta que ele imaginara. Tecendo considerações sobre os dramas, Napoleão, de resto um homem de muita leitura, disse-lhe que somente um gênero cabia a um grande homem: o trágico. Quem sabe Goethe aceitaria ir até Paris, acompanhando-o, para compor alguma coisa impressionante sobre a vida de Júlio César. Algo que fizesse referência às magníficências que certamente o mundo perdera com o assassinato dele. Insinuava-se para ele, para Goethe, porque boa parte da intelectualidade e do mundo artístico que até então o apoiara na Europa desertara dele quando Napoleão, rompendo em definitivo com a Revolução de 1789, coroara-se imperador em 1804. Lord Byron, sentindo-se traído, voltou-lhe as costas, e Beethoven, que o homenageara com uma sinfonia, retirou-lhe a dedicatória. A perseguição que o regime bonapartista, leia-se Fouche, o ministro da policia, desencadeara contra a liberdade de expressão e pensamento, fez com que Napoleão não tivesse à disposição ninguém de expressão do mundo das letras para tornar-se o grande trágico na sua corte em Fontaineblau. Algo assim como na Antigüidade, Péricles tivera Sófocles, e, um século e meio antes de Napoleão, Luís XIV, dispunha de Corneille e Racine.